Memória Prosaica...
LINHAS PARALELAS
(Excerto)
Sousa Neto
Talhado em bravio sertão, nos ignotos sertões do Piauí, o esparso e humílimo aldeamento do Sucuruju, na pequenice e na melancolia de suas estâncias, retinha sua gente e suas histórias longe, longe demais interminavelmente longe das civilizações de de suas notícias.
José Leônidas era senhor de terras e de mansão nesse sítio longínquo e sem luzimento histórico, de moradas primitivas e de viver singelo, no temor de Deus e da superstição, sob os rigores da ignorância e do extremo abandono.
Dentre as casas que, bem contadas, não ocupavam a dúzia, a sua era a mais altaneira, a mais descortinadora. Cravada no cimo de cômoro dominador e adereçada por uma grota que deslizava à sua frente, cantante e amena, no esmorecimento derradeiro da altitude, ela expunha aos descampados que a miravam seu perfil original, semelhante a um guarda-chuva aberto, com o telhado a rolar do alto cume, em acentuada inclinação, até deixar as bordas suspensas sobre paredes baixas e desmaiadas.
A habitação, apesar das posses invejadas de seu proprietário, consistentes em gado, carnaubal e lavoura, apresentava, em seus recessos, os acentos de triste e aparente pobreza. Unicamente o chão do alpendre era recamado de tijolos. Os pisos da sala de dormir, da cozinha, da câmara interior e dos quartos destinados a depósito de cereais e feixes de palha seca de carnaúba eram de argila socada, amarelecida, de nível irregular.
Causava dó a conta dos móveis. Salvo algumas cadeiras recobertas de couro cru, uma tosca mesa, dois baús velhos escondidos na recamara, além de quatro tamboretes, repartidos entre o alpendre e a cozinha, nada havia que historiar. Nenhum exagero existe em afirmar que a peça mais prestativa era o peitoril da varanda, de altura superior a um metro, onde a família se recostava, se debruçava e se sentava.
Das paredes de cediço reboco, no alpendre, pendiam os utensílios de campear, presos a cambitos e chifres de boi. Contrastando com o aspecto servidiço e gasto dos poucos objetos caseiros, os arreios, instrumentos de ação, de garbo e estima, como as gerações e as flores dos campos, renovavam-se com frequência, atestando o único esmero e o primeiro orgulho do sertanista José Leônidas, simplesmente chamado, na maioria das vezes, de Leônidas.
Do lado de fora da casa, nos domínios da natureza anfitriã, os dons e os cenários modificavam-se em regular sincronia com o céu misterioso e inacessível, reino oculto e supremo de graças nem sempre prodigalizadas, por vezes distribuídas a esmo ou iniquamente.
Como a terra é efeito do céu, salvando-se com suas bênçãos ou desgraçando-se com a maldição das secas, o que rondava a fazenda de José Leônidas, como os augúrios que espreitam todas as herdades, eram os brilhos e os cabedais da água redentora ou a desfortuna e o desespero da cruel sequidão.
[...]
(SOUSA NETO, Joaquim de. Linhas Paralelas. Brasília: Editora de Brasília - EBRASA, 1970, p. 07-08).
Nenhum comentário:
Postar um comentário