quarta-feira, 16 de setembro de 2015


Memória poética...





SÓ NÓS DOIS


Thalia Ribeiro de Alcobaça






Vivo a sonhar
Pensando no amor...
Que só nós dois veremos melhor,
Noto ao acordar

Que algo me falta,
Faltando a você.
A ilusão voa mais alta
E outra coisa não vê...

A poesia faço um voto
Para que a luz da nova aurora
Venha logo, e logo eu noto

Que o sonho terminou
Por causa da hora
Que tão só me deixou!...




(ALCOBAÇA, Thalia Ribeiro de. Só nós dois. In: AIRES, Felix (Org.). Antologia de Sonetos Piauienses. Brasília: Senado Federal - Centro Gráfico, 1972; p.
215).
 

quarta-feira, 9 de setembro de 2015


Memória poética...






DESTINO


Vidal da Penha Ferreira







Ontem, à noite, enquanto eu rezava
Prostrado ante o altar, lá na capela,
Notei uma esperança que voava
Em torno à chama ardente de uma vela.

De tanto esvoaçar, já se cansava
A pobre a esperança, e quando pela
Décima vez a chama volteava,
Caiu de repente, em cheio, dentro dela.

E o lume impiedoso, então queimando,
Aquele pobre ser foi transformando
Num mísero pedaço de carvão.

Também, na vida, somos esperança
Caindo, com a mesma semelhança,
Na chama viva e ardente da ilusão!




(FERREIRA, Vidal da Penha. Destino. In: AIRES, Felix (Org.). Antologia de Sonetos Piauienses. Brasília: Senado Federal - Centro Gráfico, 1972; p. 138) 

segunda-feira, 7 de setembro de 2015


Cultura, memória e história em pesquisa...


 

 

ENTRE TRAQUINAGENS E OUTROS CASOS CONTADOS: UM TRIBUTO A MAGALHÃES DA COSTA


Augusto Brito








Penso que as suas histórias terão amplo sucesso entre os apreciadores do gênero”.



H. Dobal, considerado por muitos a maior expressão da poesia contemporânea piauiense, estava certo em seu comentário acerca da obra de Magalhães da Costa. Esse menino traquino - como o próprio autor se definia – tornou-se, ao lado de Fontes Ibiapina, um dos maiores contistas do Estado, em todos os tempos.


Primeiro filho do casal Nair de Brito Magalhães e Francelino Valente da Costa Filho (Mestre Branco), José Magalhães da Costa nasceu em Piracuruca, em fins d’água de 1937, no dia 18 de maio.


Conheceu as primeiras letras por instrução das professoras Dalila e Hesíchia. Estudou no então Grupo Escolar Fernando Bacelar, em Piracuruca, e nos colégios Diocesano e Demóstenes Avelino, em Teresina. Bacharelou-se em Direito pela Universidade Federal do Ceará (UFC), iniciando, também ali, sua militância nos movimentos estudantis. Na capital alencarina, idealizou e fundou o Núcleo dos Estudantes Universitários do Piauí (NEUP).


Casou-se com Julia Lima, com quem teve os filhos Jomali Lima Magalhães e Joseli Lima Magalhães.


No campo profissional, abraçou a magistratura, desempenhando o cargo de juiz de direito nas comarcas de Pio IX (1967), Alto Longá (1969), Miguel Alves (1970), Piripiri (1974), Parnaíba (1979) e Teresina (1983). Alcançou o ápice da carreira ao ser nomeado desembargador do Egrégio Tribunal de Justiça do Estado do Piauí, onde assumiu diversas funções, dentre as quais presidente da Primeira Câmara Especializada Criminal e das Câmaras Reunidas Criminais. Integrou, por último, a Corregedoria do Tribunal Regional Eleitoral do Estado do Piauí. Pelos relevantes serviços prestados à magistratura mafrense, recebeu a Medalha da Associação dos Magistrados Piauienses.


No exercício do Direito, o jurista Magalhães da Costa foi de incontestável retidão, uma raridade nos dias de hoje. Ao entrincheirar-se no “[...] forte ideal de dar a cada um o que é seu”, revestia-se das bênçãos da deusa de venda nos olhos, espada e balança em punhos, a balizar o rigor de suas decisões. Não se curvou, jamais, a interesses alheios à busca incessante pela justiça. A esse respeito, Chaib sintetiza:



Como humanista, a sua justiça não era representada pela aplicação frias das leis porque os homens não foram feitos para a lei, mas as leis é que foram feitas para os homens, razão pela qual na sua aplicação há que se humanizar a frieza dos textos, segundo a natureza humana.[1]  



Foi como escritor, no entanto, que Magalhães da Costa se realizou pessoalmente e alcançou singular notoriedade. O sucesso de crítica e de público alcançado por sua produção literária responde, por si só, a qualquer questionamento ou opinião menos abalizada. Publicou: “Casos Contados”;[2]No Mesmo Trilho”;[3]Estação das Manobras”;[4]Casos Contados e Outros Contos”;[5] e “Traquinagem”,[6] obra lançada em circuito nacional, indicada para estudo de concursos vestibulares de universidades públicas e adaptada para o teatro. Em edição póstuma, seus familiares organizaram seus contos inéditos em volume intitulado  “Histórias com pé e cabeça”.[7]
 

Os contos de Magalhães da Costa integraram, também, diversas antologias e foram objetos de importantes estudos literários. Dentre essas obras coletivas podem ser destacadas: “Crime & Mistério” (1977); “Ó de Casa” (1977); “Piauí: Terra, História e Literatura” (1978); “Novos Contos Piauienses” (1983); “Outros Contos Piauienses” (1986); “Poesia Teresinense Hoje” (1988); “Passarela de Escritores” (1997); e “Literatura Piauiense para Estudantes” (1999). 


Como jornalista, Magalhães da Costa colaborou com diversos periódicos piauienses, tais como: “Almanaque da Parnaíba”, “Jornal do Piauí”, onde dirigiu as páginas de literatura, “O Estado” e “O Dia”. No jornal “Meio Norte” manteve uma coluna de crítica literária semanal.


As pessoas e os logradouros públicos de Piracuruca, bem como as propriedades rurais da família e os seus moradores, pelos idos dos anos 40 e 50, foram testemunhas do desenvolvimento do menino e do adolescente Zé do Branco. Transformaram-se, algum tempo depois, nos personagens e cenários das histórias do escritor Magalhães da Costa. Em seus contos, relatou: as brigas com o Nenen do Zeba, os atos de fé promovidos pela “Tia” Emília, as quizilas entre os caboclos do Curral de Pedras, casos de doenças e funerais de familiares e conhecidos, as caçadas de passarinhos, os prazeres experimentados com a Negra Zú... Magalhães da Costa soube, como nenhum outro, reproduzir e reverberar os costumes, os credos, os valores do povo piracuruquense... Conseguiu captar, com maestria, os elementos essenciais que compõe o amalgama cultural da gente simples de sua terra natal e redondezas.


O contista piracuruquense tornou-se imortal da Academia Piauiense de Letras (APL), em 07.08.1998, ocupando a Cadeira nº 34, cujo patrono é seu conterrâneo Anísio de Britto Mello. Integrou, também, a Academia Parnaibana de Letras (APAL), a Academia de Letras do Vale do Longá (ALVAL) e a Academia de Letras da Região de Sete Cidades (ALRESC), cadeira nº 03; patrono Raimundo da Costa Ribeiro. É patrono da cadeira nº 33 do Instituto Histórico Geográfico e Genealógico de Parnaíba. Compôs a União Brasileira de Escritores, secção do Piauí (UBE/PI), da qual foi seu primeiro presidente.


Magalhães da Costa conquistou prêmios literários em certames regionais e nacionais. Recebeu diversos títulos honoríficos, dentre os quais o de “Intelectual do Ano 1986”, conquistando o Troféu Fontes Ibiapina.


Contista de estilo inconfundível”; “[...] de linguajar simples e direto”; escreveram alguns. “É um dos bons contistas da moderna literatura brasileira”, citou outro. Alencar assim se referiu:



Sendo um exímio artífice da arte de narrar, por natureza, tem a seu favor o fato ponderável da vivência, a erudição humanística, a temática original, o estilo pessoal, enfim, toda a gama de atributos de que se constitui a alma do verdadeiro contista.[8]



Moura, por sua vez, assim comentou:



Não o vemos de maneira nenhuma atrelado ao carro dos vanguardistas. Nem por isto se deixa estratificar. Cresce sem temor, cumprindo o destino que lhe está traçado: o destino de um bom contista.[9]



Imortal em tantas academias, Magalhães da Costa encerrou, em 18.06.2002, sua participação finita na grande aventura humana. Sua partida deixou mais opacos os meios literário e jurídico piauienses, privando a todos do experimento de outras dádivas, seja por seu testemunho ético e moral, seja pela continuação do conjunto da sua importante obra.


No sagrado livro do cristianismo, há uma passagem que contém o seguinte período: “Então Jesus dizia para eles que um profeta só não é estimado em sua própria pátria [...]”.[10] O interessante versículo, atribuído ao evangelista Marcos, denuncia as dificuldades enfrentadas por Jesus Cristo em operar suas maravilhas em Nazaré da Galileia, sua cidade natal. A propósito, não se pode dizer que, em Piracuruca, Magalhães da Costa seja totalmente ignorado: Em 28.12.1989, o Poder Executivo Municipal outorgou ao contista, bem como a diversos outros conterrâneos, o “Diploma do Mérito Centenário”, no ensejo das comemorações alusivas ao centenário da emancipação política do Município. Na justificativa do mérito, lê-se:



[...] Pelos relevantes serviços prestados, seu dignificante exemplo de servir à terra natal e pelo acréscimo de seu nome na promoção do desenvolvimento social, econômico e cultural de Piracuruca.[11]



E, ainda, em cerimônia realizada a 28.06.2008, o cabedal de valores que o garoto Zé do Branco assimilou e o magistrado Magalhães da Costa cuidou em preservar, honrar e aperfeiçoar recebeu uma justa homenagem póstuma, em sua plaga mãe: o logradouro, até então conhecido como Praça de Santo Antônio, depois de passar por obras de recuperação e reforma arquitetônica, foi novamente entregue, pela Prefeitura Municipal, à população local, agora renomeado como “Praça Desembargador Magalhães da Costa”. 


No que se refere à produção literária, no entanto, o autor de “No Mesmo Trilho” permanece praticamente ignorado pela maioria da população piracuruquense. Como exceção à regra – e a bem da justiça - tem-se o trabalho de autoria da professora Glicínia de Aguiar, intitulado “Magalhães da Costa na Escola” (2001), em que a então acadêmica do curso de Licenciatura Plena em Letras efetua uma análise crítico-interpretativa das obras “Casos Contados e Outros Contos” e “Traquinagem”.


Sobre “Casos Contados e Outros Contos”, Assis Brasil assim assevera:



Esta reunião de narrativas de agora [...], traz a melhor ficção de Magalhães da Costa, livro que agrada a qualquer leitor, o da cidade grande e o da província, por nos colocar às mãos o pequeno rincão, tão fartos de significação humana e exemplar literatura.[12]        



Em referência ao conjunto legado por Magalhães da Costa, Brasil manifesta-se, ainda, que



Na captação da beleza estética de um dos mais importantes escritores, não somente do Piauí, mas do inteiro país, o escritor, entre inúmeros outros de um Brasil literário desconhecido, precisa ser mais divulgado, mais lido, tomando-lhe o pulso quer interessados críticos, quer leitores inteligentes.[13]



Constata-se, assim, que, também à luz da opinião do grande romancista piauiense, urge que ações públicas e privadas sejam desenvolvidas - nos moldes de estudos acadêmicos, círculos literários, feiras culturais, salões de livros e outras iniciativas do gênero – visando promover o conhecimento e o reconhecimento do conjunto da obra do contista piracuruquense, especialmente no rincão em que nasceu e região e, ademais, por todo esse imenso Brasil de tantos talentos.






[1]MAGALHÃES,  Joseli. Cosmovisão de Ideias. Teresina: Edufpi, 2004.
[2]COSTA, Magalhães da. Casos Contados. Teresina: Edições Fontes, 1970.
[3]COSTA, Magalhães da. No Mesmo Trilho. Teresina: Edições Fontes, 1972.
[4]COSTA, Magalhães da. Estação das Manobras. Teresina: 1985.
[5]COSTA, Magalhães da. Casos Contados e Outros Contos. Reio de Janeiro: Rio Fundo Editora, 1996.
[6]COSTA, Magalhães da. Traquinagem. Rio de Janeiro: Imago Editora, 1999.
[7]COSTA, Magalhães da. Histórias com pé e cabeça. Teresina: 2012.
[8]Altevir Soares de Alencar, advogado, filósofo, poeta e professor. Publicou: “Sonho e Realidade” (1956), “Eterno Crepúsculo” (1961) e “Poemas Para quem Sabe amar” (1968), dentre outros.
[9]Francisco Miguel de Moura, poeta e romancista. Publicou: “Areias” (1966), “Universo das Àguas” (1979) e “Poesia in Completa” (1998).
[10]Bíblia Sagrada. Evangelho de São Marcos, capítulo 6, versículo 14.
[11]PIRACURUCA. Prefeitura Municipal. Diploma do Mérito Centenário.
[12]BRASIL, Francisco de Assis Almeida. Apud GONÇALVES, Wilson Carvalho. Antologia da Academia Piauiense de Letras. Teresina: APL, 2000; p. 319.  
[13]Assis Brasil, renomado escritor Piauiense, autor, dentre outros de “Beira Rio, Beira Vida” e “Os que bebem como os cães”.




(BRITO, Augusto. Tributo a Magalhães da Costa (titulo original). Jornal O Piagüí Culturalista. Parnaíba. Parte I, abril/2010, p. 09; parte II, maio/2010, p. 09) 



domingo, 6 de setembro de 2015


Memória prosaica...






NAS PEGADAS DOS ÍNDIOS


Erich von Daniken



        


         Partindo de Teresina, 160 quilômetros de estrada firme levam até Piripiri. A paisagem é plana e intensamente verde; nas beiras da estrada há uma faixa de espinheiral passando para densa vegetação tropical. Queixadas, gado e cavalos selvagens ocasionalmente atravessando a pista, tornam o tráfego de veículos um tanto perigoso. Apesar da região localizar-se quase em zona equatorial, o clima é tolerável, pois constantemente chega uma brisa do mar, 300 quilômetros distante de lá. De Piripiri, 16 quilômetros de estrada rural, permitindo o tráfego de jipes, levam até "Sete Cidades". De repente e despreparado para tal encontro, depara-se a primeira ruina.

         Aliás, é impróprio usar o termo ruínas, pois lá não se aplica. Inexistem restos de pedras, espalhadas de maneira desordenada que, outrora poderiam ter sido dispostos em construções regulares. Inexistem, igualmente, monólitos com cantos agudos e encaixes artificiais, conforme são encontrados no planalto boliviano, em Tiahuanaco. Nem procurando de maneira mais metódica possível e recorrendo à fantasia mais fértil e imaginosa, seriam discerníveis ali, degraus, escadas ou ruas, em cujas beiradas, antigamente, teria havido casas para morar. "Sete Cidades" constitui um só caos enorme, igual a Gomorra, aniquilada pelo fogo do céu. Ali, as pedras foram destruídas, torradas, fundidas por forças apocalípticas. E deve fazer muito, mas muito tempo, que as chamas vorazes completaram a sua obra de destruição total.
         
         Neste local, jamais pessoa alguma tratou de escavar.

         Lá, a ciência jamais tentou retirar estrato após estrato do passado remotíssimo, esculpido em pedra.
         
         Igual a pontos de interrogação, pedras de forma bizarra e monstros articulados britam do solo.

         Um especialista no assunto, designado pelo Governador do Piauí como meu acompanhante, para o tempo de minha visita lá, informou que, supostamente, "Sete Cidades" teria adquirido suas formas tão estranhas e esquisitas por sucessivos depósitos de camadas de geleiras. Talvez seria esta a sua origem. Mas, pessoalmente, acho difícil aceitar tal teoria, visto que, em toda parte do Mundo - e disto tenho conhecimento pleno por ser natural da Suíça - ao recuarem as geleiras deixam em sua esteira uma larga faixa de pedras de erosão, como sua marca indelével. Ali inexistem tais marcas; "Sete Cidades" cobre um círculo de 20 quilômetros de diâmetro.

         Meu acompanhante ofereceu ainda outra suposição, a saber: Outrora ali teria existido um golfo marítimo e "Sete Cidades" representaria os restos de pedras lavradas pelas águas que, posteriormente, teriam adquirido suas formas extravagantes, pela ação do vento e pelas mudanças de temperatura. Pode ser. Por que não?

         Já vi as construções mais singulares e fantásticas, edificadas pelo capricho insondável e infinitas possibilidades criadoras da natureza. São incrivelmente grotescos e maravilhosos, o Vale da Morte, nos Estados Unidos, a catedral salina, na Colômbia, o caldeirão de granito, na Bolívia, as formações do terreno, bizarras e quase arquitetonicamente articuladas do Mar Morto. São muitas e esquisitíssimas as obras executadas pela grande construtura que é a natureza. Em "Sete Cidades", porém, tive a impressão de tratar  de coisa diferente, totalmente inexplicável.

         No mapa oficial de "Sete Cidades", aparecem nitidamente as sete separações das "ruínas" em sete regiões distintas. Teria sido por acaso? Por um capricho da natureza? Pessoalmente, não posso aceitar tanta coordenação planejada, como produto de forças naturais, incontroláveis, mas sim, antes suspeitaria de um plano racional, que, em uma época qualquer teria dado origem a essa disposição. Aliás, um detalhe que mais me intrigou foi a massa metálica, esparelada, esprimida, aparecendo entre as camadas de pedras, cujos vestígios de ferrugem, em lágrimas alongadas, descem pelas paredes. Em todo aquele caos, tal particularidade reaparece com muita frequência e regularidade. Talvez fosse possível achar uma explicação geológica para a "Tartaruga", atração especial de "Sete Cidades"; no entanto, por falta de estudos, nada há de concreto. Mesmo que a origem de "Sete Cidades" fosse e continuasse sendo inexplicável, as pinturas rupestres constituem fatos concretos; podem ser vistas palpeadas e fotografadas. E nem pode haver dúvida a respeito de tais pinturas serem de datas bem mais recentes do que os monumentos rígidos, em pedra decomposta. "Sete Cidades" tem dois passados, um antiguíssimo, que, bem provavelmente, jamais poderá ser reconstituído, e "outro" moderno, porém de data pré-histórica.

         E ali acontece o que está acontecendo em tantos outros lugares: ninguém pode fazer ideia de quem teria coberto aquelas paredes com pinturas rupestres. Todavia, logo se nota que os artistas pré-históricos - como umas poucas exceções - preferem motivos idênticos aos encontrados nas pinturas rupestres, em cavernas em redor do Globo, representando círculos - a roda (com raios) -  o sol - círculo dentro do círculo, quadrado dentro do círculo - variação de cruzes e estrelas. Parece que em toda a parte, inclusive nos lugares mais remotos, os artistas pré-históricos se formaram em uma só academia de arte.

         Na lista das celebridades que visitaram "Sete Cidades" inclui-se, também Jacques Mahieu, francês de nascimento, todavia diretor do Instituto de ciências do Homem de Buenos Ayres. Em agosto de 1975 esteve aquele cientista em Piracuruca a fim de realizar demoradas pesquisas no ambiente do Parque Nacional de Sete Cidades. Em 1976, Jacques Mahieu lançou em Paris um livro que permanece inédito no Brasil, afirmando que o Piauí teve a visita de navegadores Vikings. As provas alegadas pelo cientista são as numerosas inscrições rupestres encontradas nas Sete Cidades, no alpendre de um grande abrigo da Serra Negra.



(DANIKEN, Erich von. Nas Pegadas dos Índios. In: BITENCOURT. Jureni Machado. Apontamentos Históricos da Piracuruca. Teresina: Comepi, 1989;
p. 197-200)                      


   

                           

quinta-feira, 3 de setembro de 2015



Memória poética...







DOR


Luiza Amélia de Queiroz Nunes






Meu Deus! É delírio!...
Que agro martyrio
Ferio este lyrio
Que dobra-se em flor!
O olhar indeciso,
Errante ou conciso,
A boca sem riso,
Os lábios sem côr!

A voz emudece,
O riso emurehece
O todo enlanguece,
Ignoto penar!
Quem soffre em segredo
Não pode ser ledo
Qu'a magoa tem medo
De prazer mostrar.

A dor quando vela
N'uma alma singela,
Se trahe, se revela
Na minima acção;
Transborda do peito,
Que é espaço estreito,
Se pinta no aspeito
Com langue emoção.

A face sem vida!
A fronte pendida!
A pálpebra cahida!
Sem fogo o olhar!
Signaes evidentes
De lágrimas quentes
Se fazem soltar!

Inda hontem sorria
Com doce magia,
Sonhava, sorvia
Perfumes de amor!
Flor innocente
Na aurora ridente
Se dobra gemente,
Desmaia de dor!

Flor suspirosa,
Na hastea mimosa
Não morras formosa;
Descrestes assim?
A aragem te rende,
Seus lábios atende,
A aurora rescende
Perfuimes sem fim.



(NUNES, Luiza Amélia de Queiroz. Flores Incultas. Parnahyba: Typ. Paiz. Imp. M. F. V. Pires, 1875; p. 121-123).   



 

terça-feira, 1 de setembro de 2015


Memória prosaica...



 

UM AMIGO DE INFÂNCIA

 Humberto de Campos


         No dia seguinte ao da mudança para a nossa pequena casa dos Campos, em Parnaíba, em 1896, toda ela cheirando ainda a cal, a tinta e a barro fresco, ofereceu-me a Natureza, ali, um amigo. Entrava eu no banheiro tosco, próximo ao poço, quando os meus olhos descobriram no chão, no interstício das pedras grosseiras que o calçavam, uma castanha de caju que acabava de rebentar, inchada, no desejo vegetal de ser árvore. Dobrado sobre si mesmo, o caule parecia mais um verme, um caramujo a carregar a sua casca, do que uma planta em eclosão. A castanha guardava, ainda, as duas primeiras folhas unidas e avermelhadas, as quais eram como duas joias flexíveis que tentassem fugir do seu cofre.

         – Mamãe, olhe o que eu achei! – gritei, contente, sustendo na concha das mãos curtas e ásperas o mostrengo que ainda sonhava com o sol e com a vida.

         – Planta, meu filho… Vai plantar… Planta no fundo do quintal, longe da cerca…

         Precipito-me, feliz, com a minha castanha viva. A trinta ou quarenta metros da casa, estaco. Faço com as mãos uma pequena cova, enterro aí o projeto de árvore, cerco-o de pedaços de tijolo e telha. Rego-o. Protejo-o contra a fome dos pintos e a irreverência das galinhas. Todas as manhãs, ao lavar o rosto, é sobre ele que tomba a água dessa ablução alegre. Acompanho com afeto a multiplicação das suas folhas tenras. Vejo-as mudar de cor, na evolução natural da clorofila. E cada uma, estirada e limpa, é como uma língua verde e mobil, a agradecer-me o cuidado que lhe dispenso, o carinho que lhe voto, a água gostosa que lhe dou.

         O meu cajueiro sobe, desenvolve-se, prospera. Eu cresço, mas ele cresce mais rapidamente do que eu. Passado um ano, estamos do mesmo tamanho. Perfilamo-nos um junto do outro, para ver qual é mais alto. É uma árvore adolescente, elegante, graciosa. Quando eu completo doze anos, ele já me sustenta nos seus primeiros galhos. Mais uns meses e vou subindo, experimentando a sua resistência. Ele se balança comigo como um gigante jovem que embalasse nos braços o seu irmãos de leite. Até que, um dia, seguro da sua rijeza hercúlea, não o deixo mais. Promovo-o a mastro do meu navio e, todas as tardes, lhe subo ao galho mais empinado, onde, com o braço esquerdo cingindo o caule forte, de pé, solto, alto e sonoro, o canto melancólico da “Chegança”, que é, por esse tempo, a festa popular mais famosa de Parnaíba:

         Assobe, assobe, gajeiro,
         Naquele tope real…
         Para ver se tu avistas,
         Otolina,
         Areias de Portugal!

         Mão direita aberta sobre os olhos, como quem devassa o horizonte equóreo, mas devassando, na verdade, apenas os quintas vizinhos, as vacas do curral de Dona Páscoa e os jumentos do sr. Antônio Santeiro, eu próprio respondo, com minha voz gritada, que a ventania arrasta para longe, rasgando-a, como uma camisa de som, nas palmas dos coqueiros e nas estacas das cercas velhas, enfeitadas de melão-são-caetano:

         Alvíssaras meu capitão,
         Meu capitão-general!
         Que avistei terras de Espanha.
         Otolina,
         Areias de Portugal!

         A memória fresca, e límpida, reproduz, uma a uma, fielmente, todas as passagens épicas, todas as canções melancólicas e singelas da velha lenda marítima com que o majestoso mulato Benedito Guariba, uma vez por ano, à frente dos seus caboclos improvisados em marujos portugueses, alvoroça as ruas arenosas de Parnaíba. O vento forte, vindo das bandas da Amarração, dá-me a impressão de brisa do oceano largo. O meu camisão branco, de menino da roça, paneja, estalando, como uma bandeira solta. O cajueiro novo, oscilando comigo, dá-me a sensação de um mastro erguido rolando diante de mim, na curva do horizonte, onde o céu e o mar se beijam e misturam, as terras claras de Espanha, e areias de Portugal.

         Pouco a pouco, a noite vem descendo. Um véu de cinza envolve docemente os coqueiros dos quintais próximos. Os bezerros de Dona Páscoa berram com mais tristeza. As vacas, apartadas deles, respondem com mais saudade. Os jumentos do sr. Antônio Santeiro zurram as cinco vogais e o estribilho “ípsilon”, marcando sonoramente as seis horas. Os do sr. Antonio do Monte, ao longe, conferem e confirmam o zurro, o focinho para o alto, olhando o milho de ouro das primeiras estrelas. E eu, gajeiro de uma nau ancorada na terra, desço tristemente do folhudo mastro do meu cajueiro, sonhando com o oceano alto, invejando a vida tormentosa dos marinheiros perdidos, que não tinham, pelo menos, a obrigação de estudar, à luz de um lampião de querosene, a lição do dia seguinte…

         Aos treze anos da minha idade, e três da sua, separamo-nos, o meu cajueiro e eu. Embarco para o Maranhão, e ele fica. Na hora, porém, de deixar a casa, vou levar-lhe o meu adeus. Abraçando-me ao seu tronco, aperto-o de encontro ao meu peito. A resina transparente e cheirosa corre-lhe do caule ferido. Na ponta dos ramos mais altos abotoam os primeiros cachos de flores miúdas e arroxeadas como pequeninas unhas de crianças com frio.

         – Adeus, meu cajueiro! Até à volta!

         Ele não diz nada, e eu me vou embora.

         Da esquina da rua, olho ainda, por cima da cerca, a sua folha mais alta, pequenino lenço verde agitado em despedida. E estou em S. Luís, homem-menino, lutando pela vida, erijando o corpo no trabalho bruto e fortalecendo a alma no sofrimento, quando recebo uma comprida lata de folha acompanhando uma carta de minha mãe: “Receberás com esta uma pequena lata de doce de caju, em calda. São os primeiros cajus do teu cajueiro. São deliciosos, e ele te manda lembranças…”

         Há, se bem me lembro, uns versos de Kipling, em que o Oceano, o Vento e a Floresta palestram e blasfemam. E o mais desgraçado dos três é a Floresta, porque, enquanto as ondas e as rajadas percorrem terras e costas, ela, agrilhoada ao solo com as raízes das árvores, braceja, grita, esgrime com os galhos furiosos, e não pode fugir, nem viajar… Recebendo a carta de minha mãe, choro, sozinho. Choro, pela delicadeza da sua idéia. E choro, sobretudo, com inveja do meu cajueiro. Por que não tivera eu, também, raízes como ele, para me não afastar nunca, jamais, da terra em que eu, ignorando que o era, havia sido feliz?

         Volto, porém. O meu cajueiro estende, agora, os braços, na ânsia cristã de dar sombra a tudo. A resina corre-lhe do tronco, mas ele se embala, contente, à música dos mesmos ventos amigos. Os seus galhos mais baixos formam cadeiras que oferece às crianças. Tem flores para os insetos faiscantes e frutos de ouro pálido para as pipiras cinzentas. É um cajueiro moço, e robusto. Está em toda a força e em toda a glória ingênua da sua existência vegetal.

         Um ano mais, e parto novamente. Outra despedida; outro adeus mais surdo, e mais triste:

         -Adeus, meu cajueiro!

         O mundo toma-me nos seus braços titânicos, arrepiados de espinhos. Diverte-se comigo como a filha do rei de Brobdingnag com a fragilidade do capitão Guliver. O monstro maltrata-me, fere-me, tortura-me. E eu, quase morto, regresso a Parnaíba, volto a ver minha casa, e a rever o meu amigo.

         – Meu cajueiro, aqui estou!

         Mas ele não me conhece mais. Eu estou homem; ele está velho. A enfermidade cava-me o rosto, altera-me a fisionomia, modifica-me o tom da voz. Ele está imenso e escuro. Os seus galhos abraçam coqueiros, afogam laranjeiras que noivam, ou ultrapassam a cerca e vão dar sombra, na rua, às cabras cansadas, aos mendigos sem pouso, às galinhas sem dono… Quero abraçá-lo, e já não posso. Em torno ao seu tronco fizeram um cercado estreito. No cercado imundo, mergulhado na lama, ressona um porco… Ao perfume suave da flor, ao cheiro agreste do fruto, sucederam, em baixo, a vasa e a podridão!

         – Adeus, meu cajueiro!



(CAMPOS, Humberto de. Memórias. Rio de Janeiro: Livraria Editora Marisa, 1933)