segunda-feira, 12 de setembro de 2016


Memória Prosaica...

 


MEMÓRIAS DE UM EX-CLANDESTINO

(Prólogo)


Henrique de Carvalho Matos




          "Estas Memórias de um ex-clandestino enfocam a vida de um estudante da década de 60. Todos os fatos aqui relatados realmente ocorreram. Somente o nome real da companheira Izabel não foi revelado, por não me lembrar mais. Nestas narrativas, procurei obstinadamente ser fiel às minhas memórias. Arrastado pelo torvelinho das paixões políticas, vivenciei, como estudante, provavelmente, um dos períodos mais agitados da política brasileira.

            Foi no início da década de 60 que o movimento estudantil encontrou um campo fértil para o seu desenvolvimento. O clima de liberdade vivido dentro das Universidades e Escolas Secundárias, antes de 1964, permitiu à UNE (União Nacional dos Estudantes) se colocar como um braço resoluto em defesa das lutas sociais no país, na medida em que aumentavam as suas lutas reivindicatórias.

            Com o movimento militar de 31 de março de 1964, a chamada luta pela "revolução brasileira" foi bruscamente interrompida. A CGT (Central Geral dos Trabalhadores), os principais sindicatos, a UNE, foram fechadas, e os seus líderes presos ou procurados. A repressão castigou duramente a vanguarda dos movimentos populares.

            A liderança estudantil se sentiu órfã, sem saber em quem ou em que se apoiar para iniciar a resistência ao governo militar. Sem preparação política, sem experiência e amadurecimento, centenas de estudantes em todo o país começaram a reagir e a desempenhar, sem querer, um papel de vanguarda das lutas sociais.

            Toda a frustração daqueles que aspiravam por mudanças, reformas ou revolução, nos mais diversos setores da sociedade, foi transportada e concentrada bruscamente para as cabeças inquietas e rebeldes dos estudantes. A partir de 1968, o dique que represava todas estas frustrações foi rompido com a morte do estudante Edson Luiz, no Restaurante Calabouço, no Rio de Janeiro. A liderança estudantil assume de fato o papel de vanguarda na luta contra o autoritarismo. Na mesma medida que o governo militar reagia pela força contra o movimento estudantil, este radicalizava suas posições ideológicas passando a adotar posições revolucionárias cada vez mais à esquerda.

            Antes de 1964, os grupos políticos que detinham o controle da UNE eram basicamente dois: a A.P. (Ação Popular) e o P.C.B. (Partido Comunista Brasileiro). O primeiro grupo era originário da J.U.C. (Juventude Universitária Católica) e se posicionava politicamente para os estudantes com um misto de reformismo e revolução. Estava muito ligado ao setor da Igreja Católica progressista. Tinha como o seu competidor principal o Partido Comunista e às vezes assumia posições conjuntas com os minúsculos grupos de direita. No entanto, depois de abril de 1964, a A.P. radicalizou, se posicionando à esquerda do P.C.B. e assumiu ideologicamente uma concepção "marxista-leninista".

            O Partido Comunista Brasileiro, que antes de 1964 tinha uma sólida penetração nos meios universitários, adotava uma posição híbrida entre reforma e revolução. Do ponto de vista internacional era favorável à coexistência pacífica, e seguia sem maiores discussões a orientação da União Soviética. No plano interno, pregava uma aliança com a burguesia para poder realizar o primeiro passo da chamada "revolução brasileira". Depois de 1964, os líderes do P.C.B. ficaram bastante desacreditados perante os estudantes e nas discussões se negavam a fazer a "autocrítica". A consequência de tudo isto resultou em dissidências que romperam com o Partido. Saíram para várias agremiações, na sua maioria compostas por grupos mais à esquerda, tais como POLOP (Política Operária), o PCBR (Partido Comunista Brasileiro Revolucionário), a ALN (Aliança Libertadora Nacional), POC (Partido Operário Comunista) e PORT (Partido Operário Revolucionário Trotskista).

            Com a reanimação do movimento estudantil a partir de 1967, o PCB perde grande parte de seus membros. Igualmente perde posições dentro dos Diretórios Acadêmicos nas Universidades e na Diretoria da UNE, esta na clandestinidade. A AP cresce de prestígio entre os estudantes e ocupa a maioria dos postos na liderança estudantil. Em alguns estados, como na Guanabara, as "dissidências" do PCB conseguem ganhar alguns D.C.Es (Diretório Central dos Estudantes), num clima de boa convivência com a AP.

            No ano de 1968, a liderança estudantil chega ao ápice de organização e mobilização, como não havia sido registrado nem mesmo antes do golpe militar. Manifestações populares são realizadas, sob a égide dos estudantes, convocando ao povo, e principalmente aos trabalhadores, a se incorporarem na luta contra o autoritarismo. No rio de Janeiro, e em todo o país, são realizadas grandes manifestações populares e estudantis. O governo toma cautela. Ora permite a realização de manifestações pacíficas, ora as proíbe com repressão violenta. a liderança estudantil, concentrada dentro das Universidades, em geral estavam a salvo das prisões que se realizavam nas ruas.

            No segundo semestre de 1968, já se percebia a "fadiga" das manifestações. O governo militar demonstrava ter fôlego para resistir, e ideia, generalizada entre os estudantes e populares, de estar próximo a derrubada do autoritarismo, não acontecia. A divisão entre a liderança estudantil se acirrou. A intolerância de posições políticas entre a AP e a dissidência do PCB, representadas nos líderes Travassos e Vladimir Palmeira, atingiu níveis de desgaste comprometendo a continuação da luta. A UNE esteve a ponto de se dividir. A preparação do 30º Congresso da UNE acenou com a possibilidade da existência de duas UNEs. O governo militar aproveitou a oportunidade para dar um duro golpe nos estudantes durante a realização do 30º Congresso da UNE, realizado na clandestinidade em Ibiúna (SP).

            A partir desse acontecimento, o movimento estudantil entra praticamente em colapso, restando aos líderes estudantis continuarem a luta na clandestinidade, contando com uma dura repressão, onde a regra eram as prisões e as mortes. O caminho da resistência pela luta armada, guerrilhas, assaltos a banco e sequestros estimulou e agigantou os órgãos de repressão, que aproveitaram a oportunidade para eliminar, ora nas prisões, ora na guerrilha, centenas de jovens incnformados.

            É dentro desta atmosfera política que se desenrola o meu relato Um jovem idealista que, como milhares de estudantes em todo o país, se viu envolvido no vendaval das paixões políticas. Fortemente influenciado por uma situação política séria por que passou o país, fui obrigado a enfrentar situações difíceis e perigosas, vivendo momentos de grande tensão, alegrias, amor e frustração.

            Sobrevivente da década de 60, relato, sem mágoas, sem nenhum sentimento de vingança ou revanchismo, toda a minha paixão. Que tudo o que se passou sirva como uma reflexão para aqueles que não viveram o autoritarismo, e possam, a partir daí, tirar lições do que ocorreu e ver até onde pode chegar a intolerância do ser humano. "




(MATOS, Henrique de Carvalho. Memórias de um ex-clandestino. Parnaíba: Gráfica Spreed, s/d; p. 05-08).





                           

                          



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