Memória prosaica...
DIREITO E PODER
Gerson de Britto Mello Boson
Com
os valores paz, ordem, segurança e justiça, o espírito manifesta sua ideia
do Direito sob forma normativa, criando com esta a sociedade (instituições
diversas), assim regulamentando a conduta humana na temporalização convivida.
A
vida é dada ao homem que, todavia, para continuar vivendo, tem necessidade de construí-la,
construção que faz realizando valores, especialmente aqueles atinentes à sua
conservação, defesa, bem-estar, saúde, prazeres, reprodução, etc., tantos que,
para indica-los todos seria preciso transcrever de um bom dicionário metade dos
seus verbetes. Para realiza-los, o homem necessita agir, praticar atos que, por
si mesmos, às vezes, já importam em realização de valores com vista ao alcance
de outros mais elevados ou mais distantes, e assim a temporalização da vida se
torna substancialmente uma dinâmica axiológica de que resulta a civilização.
Para
praticar atos de realização de valores, ou que visem a sua obtenção, alienação,
transformações, o homem necessariamente recorre às suas forças naturais impulsivas,
comumente denominada vontade, de vez
que esta, nestes termos, somente a natureza humana as possui. O desempenho do
espírito consiste pois, em elaborar as formas dessa realização, graças ao que
os atos praticados, e bem assim os seus resultados, ganham inteligibilidade.
Esta é jurídica quando os atos seguem as formas normativas e os valores
conseguidos se acham entre os que têm, expressa ou implicitamente, a forma da
sua realização, alienação, transformações, de algum modo referida e assegurada
na ordenação da normatividade.
No
plano jurídico, o homem é aqui considerado, radicalmente, como uma unidade
indivisível. Intui os valores, sente-os, pensa, idealiza-os e age no sentido de
realiza-los, praticando na forma e sob a segurança das normas jurídicas que
consubstanciam a sociedade em que vive. Fora desta, o homem age na sua liberdade
absoluta, podendo, naturalmente, sofrer reversos consequentes. Todavia, nesta
hipótese, ainda que agindo inteligentemente, não o faz como pessoa, mas sim
como agiria o animal para a satisfação dos seus desígnios. E assim não haveria
como supor Direito ou prática de atos jurídicos. Havendo somente a contemplação
da força a serviço de sentimentos intencionais, pois, para agir como pessoa, o
homem o faz na medida certa da organização da liberdade que, por justiça,
normativiza a ideia do Direito.
Em nenhum
momento, porém, pode-se olvidar que quem age é o indivíduo, pois somente este
possui as forças naturais impulsivas que podem leva-lo a realizar valores, nas
formas que lhe são oferecidas pelo espírito.
Neste
ponto, duas observações importantes devem ficar registradas. As forças
impulsivas em si mesmas, não se confundem com o Direito. Em nenhum aspecto o
Direito pode com elas ser identificado. O Direito é ideia.
As
forças impulsivas são juridicamente
consideradas apenas no processo da sua utilização, por se achar esta
racionalizada pela normatividade, isto é, racionalizada no seu valor, tecnicamente denominado poder, como tal presente na situação das
pessoas. Assim, por ser o poder, incontestavelmente, um valor existencial da
maior importância para a efemeridade do Direito. Embora não realizável na
normatividade, como o são a paz, a ordem, a segurança e a justiça,
por não ser valor do direito, mas
valor por este também regulamentado, sua presença indefectível na atuação
histórica do homem o torna nuclear na temporalização da ideia e dos conteúdos
do Direito. Isto o faz impostergável pressuposto de todo o sistema normativo
que pretenda ter eficácia. Sem ele, as normas jurídicas não teriam como dar
segurança à realização dos direitos subjetivos que declaram, muito menos como
ordenar e estabelecer padrões de conduta.
Na
ideia do Direito, o poder como valor
(utilização racionalizada das forças naturais impulsivas da vida) vem distribuído
pela normatividade como direitos subjetivos, públicos e privados, os quais, por
sua vez, são individuais ou coletivos. Dos direitos
subjetivos públicos, tecnicamente denominados competências legais, são titulares pessoas individuais reconhecidas
como autoridades, agentes públicos, ou pessoas coletivas, entre nós ditas pessoas jurídicas públicas, escolhidas
aquelas e estruturadas estas, segundo procedimentos estabelecidos no próprio
ordenamento normativo.
Dentre
as pessoas jurídicas públicas é, sem
dúvida, o Estado a mais importante, porque onde aparece a sua figuração, esta
representa a unidade de todas as competências, fato que o torna, em última
análise, o verdadeiro titular dos poderes públicos, especialmente denominados
soberania, imperium. Nesta hipótese, as
demais pessoas jurídicas públicas e as autoridades dele integrantes são destaques
de sua personalidade, ou meros executores parciais de seu poder unificado,
cujas competências em que se desdobra, para melhor racionalização do próprio
exercício, se concentram, como já vimos acima, em setores de prestação de
serviços, denominados Poderes Executivo,
Legislativo e Judiciário.
Dos
direitos subjetivos privados são titulares as pessoas físicas em geral, isto é,
os cidadãos e as pessoas jurídicas
particulares, também estruturadas de acordo com preceitos permissivos, a
propósito legislados. São, por excelência, direitos deferidos a pessoas
singulares e constituem, essencialmente, o plexo do modo de ser jurídico do
homem individual na sociedade de que participe, na sociedade em que vive e
atua. Distinguem-se, ademais, dos direitos subjetivos públicos, porque não
integram as competências do Estado que, todavia, os absorve para os efeitos
ordenativos das suas garantias, justiça e paz de exercício.
Contudo,
o assunto, neste aspecto, não nos parece próprio ao trato da Filosofia do Direito, mas, sim, do
Direito comumente denominado positivo, institucionalizado, porque, afora os
conceitos básicos aqui traduzidos, constituem objeto das tarefas do legislador,
especialmente se constituinte, ao qual cabe prever e estruturar as construções
jurídicas que, na conformidade dos momentos históricos em que exerce o seu
desempenho, possam melhor satisfazer as necessidades e as aspirações dos homens
que promovem a vida social.
Na
verdade, o mais importante aqui é ter por assentado que direito subjetivo é o poder indefectível das pessoas, como tal
racionalizado na normatividade em que se denominam os conteúdos e as formas de
ação do homem vivendo em sociedade, e bem assim se estabelecem os limites da sua
liberdade de agir na realização dos seus valores existenciais.
O
poder, aqui juridicamente
considerado, não se confunde, pois, com a energia vital, potência ativa do ser
humano, tampouco com a afirmação de um processo funcional, fisiológico,
condicionado pelos instintos que lhe dão unidade orgânica, ou destes é
consequência histórica. O poder, aqui juridicamente
considerado, é valor que torna não indiferente a utilização dessa energia do
homem, fator natural imprescindível à construção da própria vida que quer
continuar vivendo.
Como
valor, o poder centraliza todos os demais a concentrar na luta por essa
construção e, idealizado em face dos valores que acompanham a ideia do Direito,
principalmente a justiça, gera múltiplas aspirações políticas (ideologias) a
respeito da melhor forma de racionaliza-lo na efetividade das instituições
jurídicas, principalmente nas instituições públicas, por excelência o Estado.
Daí dizer-se ser este o poder da sociedade politicamente organizada.
É
principalmente aqui, neste momento da História humana como expressão da
cultura, que surge a norma natural contida no princípio ulpiniano do suum cuique tribuere porque, como já
deixamos demonstrado, o Estado é a organização jurídica imaginada pelo espírito
para estabelecer a ordem, levar a paz, e garanti-las com as determinações possivelmente
mais justas do que é meu, teu, dele
ou nosso, na distribuição dos bens da
vida, quando convivida.
A
ideia do Direito, acompanhada pelos seus valores, ordem, paz, segurança e
justiça, explicitada em normatividade própria, é assim, para o homem, se não a
única, a mais importante ideia de suas realizações e permanência no planeta
Terra.[1]
[1]BOSON,
Gerson de Britto Mello. Filosofia
do Direito: interpretação antropológica. 2ª ed. Belo
Horizonte: Livraria Del Rey Editora, 1996; p. 304-307.
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