sexta-feira, 11 de dezembro de 2015


Memória prosaica...





 

DIREITO E PODER


Gerson de Britto Mello Boson













Com os valores paz, ordem, segurança e justiça, o espírito manifesta sua ideia do Direito sob forma normativa, criando com esta a sociedade (instituições diversas), assim regulamentando a conduta humana na temporalização convivida.

A vida é dada ao homem que, todavia, para continuar vivendo, tem necessidade de construí-la, construção que faz realizando valores, especialmente aqueles atinentes à sua conservação, defesa, bem-estar, saúde, prazeres, reprodução, etc., tantos que, para indica-los todos seria preciso transcrever de um bom dicionário metade dos seus verbetes. Para realiza-los, o homem necessita agir, praticar atos que, por si mesmos, às vezes, já importam em realização de valores com vista ao alcance de outros mais elevados ou mais distantes, e assim a temporalização da vida se torna substancialmente uma dinâmica axiológica de que resulta a civilização.

Para praticar atos de realização de valores, ou que visem a sua obtenção, alienação, transformações, o homem necessariamente recorre às suas forças naturais impulsivas, comumente denominada vontade, de vez que esta, nestes termos, somente a natureza humana as possui. O desempenho do espírito consiste pois, em elaborar as formas dessa realização, graças ao que os atos praticados, e bem assim os seus resultados, ganham inteligibilidade. Esta é jurídica quando os atos seguem as formas normativas e os valores conseguidos se acham entre os que têm, expressa ou implicitamente, a forma da sua realização, alienação, transformações, de algum modo referida e assegurada na ordenação da normatividade.

No plano jurídico, o homem é aqui considerado, radicalmente, como uma unidade indivisível. Intui os valores, sente-os, pensa, idealiza-os e age no sentido de realiza-los, praticando na forma e sob a segurança das normas jurídicas que consubstanciam a sociedade em que vive. Fora desta, o homem age na sua liberdade absoluta, podendo, naturalmente, sofrer reversos consequentes. Todavia, nesta hipótese, ainda que agindo inteligentemente, não o faz como pessoa, mas sim como agiria o animal para a satisfação dos seus desígnios. E assim não haveria como supor Direito ou prática de atos jurídicos. Havendo somente a contemplação da força a serviço de sentimentos intencionais, pois, para agir como pessoa, o homem o faz na medida certa da organização da liberdade que, por justiça, normativiza a ideia do Direito.

Em nenhum momento, porém, pode-se olvidar que quem age é o indivíduo, pois somente este possui as forças naturais impulsivas que podem leva-lo a realizar valores, nas formas que lhe são oferecidas pelo espírito.

Neste ponto, duas observações importantes devem ficar registradas. As forças impulsivas em si mesmas, não se confundem com o Direito. Em nenhum aspecto o Direito pode com elas ser identificado. O Direito é ideia.

As forças impulsivas são juridicamente consideradas apenas no processo da sua utilização, por se achar esta racionalizada pela normatividade, isto é, racionalizada no seu valor, tecnicamente denominado poder, como tal presente na situação das pessoas. Assim, por ser o poder, incontestavelmente, um valor existencial da maior importância para a efemeridade do Direito. Embora não realizável na normatividade, como o são a paz, a ordem, a segurança e a justiça, por não ser valor do direito, mas valor por este também regulamentado, sua presença indefectível na atuação histórica do homem o torna nuclear na temporalização da ideia e dos conteúdos do Direito. Isto o faz impostergável pressuposto de todo o sistema normativo que pretenda ter eficácia. Sem ele, as normas jurídicas não teriam como dar segurança à realização dos direitos subjetivos que declaram, muito menos como ordenar e estabelecer padrões de conduta.

Na ideia do Direito, o poder como valor (utilização racionalizada das forças naturais impulsivas da vida) vem distribuído pela normatividade como direitos subjetivos, públicos e privados, os quais, por sua vez, são individuais ou coletivos. Dos direitos subjetivos públicos, tecnicamente denominados competências legais, são titulares pessoas individuais reconhecidas como autoridades, agentes públicos, ou pessoas coletivas, entre nós ditas pessoas jurídicas públicas, escolhidas aquelas e estruturadas estas, segundo procedimentos estabelecidos no próprio ordenamento normativo.  

Dentre as pessoas jurídicas públicas é, sem dúvida, o Estado a mais importante, porque onde aparece a sua figuração, esta representa a unidade de todas as competências, fato que o torna, em última análise, o verdadeiro titular dos poderes públicos, especialmente denominados soberania, imperium. Nesta hipótese, as demais pessoas jurídicas públicas e as autoridades dele integrantes são destaques de sua personalidade, ou meros executores parciais de seu poder unificado, cujas competências em que se desdobra, para melhor racionalização do próprio exercício, se concentram, como já vimos acima, em setores de prestação de serviços, denominados Poderes Executivo, Legislativo e Judiciário.

Dos direitos subjetivos privados são titulares as pessoas físicas em geral, isto é, os cidadãos e as pessoas jurídicas particulares, também estruturadas de acordo com preceitos permissivos, a propósito legislados. São, por excelência, direitos deferidos a pessoas singulares e constituem, essencialmente, o plexo do modo de ser jurídico do homem individual na sociedade de que participe, na sociedade em que vive e atua. Distinguem-se, ademais, dos direitos subjetivos públicos, porque não integram as competências do Estado que, todavia, os absorve para os efeitos ordenativos das suas garantias, justiça e paz de exercício.

Contudo, o assunto, neste aspecto, não nos parece próprio ao trato da Filosofia do Direito, mas, sim, do Direito comumente denominado positivo, institucionalizado, porque, afora os conceitos básicos aqui traduzidos, constituem objeto das tarefas do legislador, especialmente se constituinte, ao qual cabe prever e estruturar as construções jurídicas que, na conformidade dos momentos históricos em que exerce o seu desempenho, possam melhor satisfazer as necessidades e as aspirações dos homens que promovem a vida social.

Na verdade, o mais importante aqui é ter por assentado que direito subjetivo é o poder indefectível das pessoas, como tal racionalizado na normatividade em que se denominam os conteúdos e as formas de ação do homem vivendo em sociedade, e bem assim se estabelecem os limites da sua liberdade de agir na realização dos seus valores existenciais.

O poder, aqui juridicamente considerado, não se confunde, pois, com a energia vital, potência ativa do ser humano, tampouco com a afirmação de um processo funcional, fisiológico, condicionado pelos instintos que lhe dão unidade orgânica, ou destes é consequência histórica. O poder, aqui juridicamente considerado, é valor que torna não indiferente a utilização dessa energia do homem, fator natural imprescindível à construção da própria vida que quer continuar vivendo.
Como valor, o poder centraliza todos os demais a concentrar na luta por essa construção e, idealizado em face dos valores que acompanham a ideia do Direito, principalmente a justiça, gera múltiplas aspirações políticas (ideologias) a respeito da melhor forma de racionaliza-lo na efetividade das instituições jurídicas, principalmente nas instituições públicas, por excelência o Estado. Daí dizer-se ser este o poder da sociedade politicamente organizada.

É principalmente aqui, neste momento da História humana como expressão da cultura, que surge a norma natural contida no princípio ulpiniano do suum cuique tribuere porque, como já deixamos demonstrado, o Estado é a organização jurídica imaginada pelo espírito para estabelecer a ordem, levar a paz, e garanti-las com as determinações possivelmente mais justas do que é meu, teu, dele ou nosso, na distribuição dos bens da vida, quando convivida.

A ideia do Direito, acompanhada pelos seus valores, ordem, paz, segurança e justiça, explicitada em normatividade própria, é assim, para o homem, se não a única, a mais importante ideia de suas realizações e permanência no planeta Terra.[1]






[1]BOSON, Gerson de Britto Mello. Filosofia do Direito: interpretação antropológica. 2ª ed. Belo Horizonte: Livraria Del Rey Editora, 1996; p. 304-307.





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