Memória Prosaica |
DISCURSO DE POSSE DE JOSÉ MAGALHÃES DA COSTA NA ACADEMIA PIAUIENSE DE LETRAS
José Magalhães da Costa
"Chego
a esta Casa de Letras, o mais elevado sodalício literário do meu Estado-natal,
sem vaidade, mas com justificado orgulho, por haver percorrido um longo
caminho, vindo da minha querida Piracuruca, onde através das professoras Dalila
e Hesíchia, iniciei e aprendi as primeiras letras e os rudimentos do idioma
pátrio. Lá tive, também, como professor, José Bitencourt Pereira, por cujas
mãos passaram várias gerações de estudantes. A estes primeiros mestres rendo,
na oportunidade, o preito de minha imorredoura gratidão e eterna saudade.
Quando
ainda adolescente, meu professor de Português, Valdir Bastos, aqui em Teresina,
passou uma tarefa à classe: redação sobre o tema “A Tapera”. Sendo eu um menino
do interior, familiarizado com as pobres habitações da região, apresentei meu
trabalho e, para surpresa minha, obtive o grau máximo. A partir dali, senti
despertar em mim a inclinação para a literatura escrita. Passei, então, a ler
as obras de bons autores, todos os livros que me caiam nas mãos, numa
verdadeira febre de leitura. Lembro: a leitura de um conto de Fontes Ibiapina,
em que ele retrata a figura de um valentão num forró, levou-me a optar por esse
gênero como a forma de melhor expressar o que via e sentia de minha terra e de
minha gente. Comecei a escrever para o jornalzinho do meu colégio, o “Demóstenes
Avelino”, tornando-me então líder estudantil. Nesta condição, e já como
universitário, idealizei, fundei e dirigi o Núcleo dos Estudantes
Universitários do Piauí (NEUP), entidade que ainda hoje congrega e acolhe
alunos piauienses de curso superior em Fortaleza, tendo também ali participado
ativamente da política estudantil, na qualidade de membro do Diretório Acadêmico
Clóvis Beviláqua da Faculdade de Direito da Universidade Federal do Ceará, onde
fiz meu curso Jurídico. Na Capital Alencarina, colaborei durante o curso de
Direito, com regularidade, para jornais e suplementos literários locais em voga,
enviando contos e crônicas e chegando a ganhar alguns concursos, o que muito me
incentivou a concorrer em certames de abrangência nacional do gênero, como foi
o caso do “Companhia Minas Brasil”, promovido pela Revista Alterosa, de Belo Horizonte, em que saí premiado com o conto “O
Bilhete”. Simultaneamente, escrevia para o Almanaque
da Parnaíba, mandando matérias e ajudando na revisão deste tradicional
anuário, por um período de dez anos consecutivos.
De
regresso ao Piauí, formado em Direito, continuei fazendo literatura, dirigindo
suplementos literários e fundando a entidade de classe do escritor, buscando
não só a divulgação das letras da terra, como o fortalecimento e a elevação do
prestígio do autor piauiense. Assim é que, no início da década de 70, em
companhia de outros intelectuais e idealistas, entre os quais alguns que hoje
integram esta Academia, a exemplo de Francisco Miguel de Moura, Hardi Filho,
Herculano Moraes, William Palha Dias, J. Miguel de Matos, e o próprio Presidente,
Professor Celso Barros Coelho, consegui criar a seccional piauiense da União
Brasileira de Escritores, entregue, nos dias atuais, a literatos da estirpe
deum Cid Teixeira de Abreu e de um Kenard Kruel, entre outros de mesmo valor.
De
lá para cá, aí já como magistrado, dei prosseguimento ao meu trabalho de
produção e difusão de obras de conterrâneos nossos, descobrindo nomes e
realçando valores, despertando vocações e revelando talentos. Paralelamente,
escrevia e editava, com grande dificuldade, meus livros de contos, maneira
melhor que encontrei para externar minha criatividade. Entendo, como muitos,
ser o homem o mais universal dos seres habitantes deste Planeta, vivendo os
mesmos sentimentos de tristeza e alegria, de dor e prazer, de certeza e de
dúvida, pêndulo eterno oscilando entre o bem e o mal. Como contador de
histórias, abracei o conto de cunho regional, quando tive a oportunidade de
conhecer a obra dos mais expressivos cultores desta especialidade literária,
destacadamente os mineiros Afonso Arinos e Guimarães Rosa, os gaúchos João Simões
Lopes Neto e Darcy Azambuja, os paulistas Valdomiro Silveira e Monteiro Lobato,
os cearenses Herman Lima e Moreira Campos, além da rica produção literária de
Fontes Ibiapina, figura de destaque do conto genuinamente piauiense e criador
de tipos, que eternizou em seus numerosos romances e em mais de uma dezena de
livros de histórias curtas, gênero este onde também reconheço caminhar com mais
segurança e maior desenvoltura, em razão da própria convivência com o povinho
deste Chão de meu Deus, com quem,
aliás, me identifico, e cujo linguajar procuro retratar com fidelidade, sem
descer, no entanto, ao comum da escrita, como já o fizeram muitos
regionalistas; enquanto isto, percorria distantes comarcas do meu Piauí, como
Juiz de Direito, em contato direto e permanente com o homem e seus problemas,
no manuseio de autos processuais, onde encontrei matéria com fartura para a
feitura de minhas histórias, além de exercer a profissão de professor
secundarista, que, de igual modo, me deu elementos e dados necessários à
elaboração de meus contos, espécie – como disse ainda agora – que escolhi como
forma de externar minha criação. Como contista, considero-me apenas um contador
de casos, embora esteja convencido de que não é tão simples assim a arte de
narrar um pequeno romance. Faço, portanto – e quero chamar a atenção dos
senhores para isso – uma literatura transposta, com base em tipos humanos que
conheço muito bem através da convivência com a gente do meu rincão
piracuruquense, e por estar metido constantemente no meio dos caboclos da
fazenda Curral de Pedra, de minha tia Emília, vendo e estudando os costumes, superstições,
divertimentos e brincadeiras, profissão ou meios de vida, sonhos e desejos,
angústias e frustrações, lutas e vitórias, tramas e dramas desse povo. A vida
dele, enfim. São casos ouvidos, vividos e estudados, criados pela força da
ficção, onde o social revela o homem. Narrativas de tipos comuns de gente,
encontrados aqui e alhures. Criaturas feitas de carne e osso como todos nós,
que precisam ser olhadas na grandeza de seres humanos, de pobres filhos de
Nosso Senhor. Uso, portanto, uma linguagem verdadeira, recriada, que aproveito
para fazer denúncias ou mostrar hábitos, fazer criaturas vivas. Meus
personagens são pessoas simples, humildes, diversas, vivendo assim na cidade
como no campo, mas sempre retirados da própria vida, nas suas atribuições e
enrascadas, na realidade de suas existências rasteiras, de seu viver miúdo. São
nossos irmãos. Essa gente tem sido muito bem recebida no papel. Falta-lhe,
porém, acolhida no coração de muitos, especialmente daqueles que têm o poder
nas mãos e podem tudo.
Minhas
senhoras, meus senhores:
O
patrono da cadeira 34, na qual tomo posse hoje, é figura exponencial da
história e da cultura piauienses. Por um destes desígnios do Destino, é de
Piracuruca, como eu. Dele ainda sou parente, pela árvore genealógica dos Brito.
Anísio
de Brito Melo nasceu em 26 de setembro de 1886 e morreu em 17 de abril de 1946,
aqui em Teresina. Foi professor e historiador, odontólogo e militar. Detentor
de admirável cultura científica, bélica e humanística. Fundou e dirigiu o
Instituto Histórico e Geográfico Piauiense, e integrou outras entidades
congêneres. De renome nacional, foi Conselheiro Municipal de Teresina. Tem
trabalhos da mais alta importância, figurando no Dicionário Histórico, Geográfico e Etimológico Brasileiro, Rio de
Janeiro – 1922. Deu nome ao Museu histórico do Piauí, conhecido como “Casa
Anísio Brito”, um dos relicários de nossa História. Deixou inéditos dois
escorços no campo da historiografia e da política social: História do Piauí e
Páginas Piauienses. Não era de se exigir mais de um extraordinário polígrafo
como ele. Entre seus inúmeros trabalhos publicados em livros, ressaltamos: Contribuição do Piauí à Guerra do Paraguai,
Fazendas Nacionais no Piauí, O Município Piauiense, Adesão do Piauí à Confederação do Equador,
Os Balaios no Piauí, Independência do Piauí, Do Ensino Primário.
Confesso
que me sinto pequenino perante a envergadura intelectiva de um homem deste
porte. A seu respeito, disse Francisco Miguel de Moura no discurso em que
recebeu nesta Casa o Padre Cláudio Melo:
“Anísio Brito tem lugar de honra no coração
de todo pesquisador que conhece a história de nosso Arquivo Público. Ele foi a
vida daquela Casa, por ela devotou um extremado amor de mãe e por ela consumou
sua saúde e deu a sua vida!”
O
escritor Wilson Carvalho Gonçalves, em seu Grande Dicionário
Histórico-Biográfico Piauiense, e preciso e veraz:
“Anísio Brito foi pesquisador de muito
mérito. Deu à nossa historiografia uma valiosa contribuição no campo da
pesquisa e da análise dos fatos polêmicos da história do Piauí, realizando um
trabalho de cunho científico e revisionista, procurando esclarecer a verdade.
Legou-nos um acervo de obras preciosas para a nossa história”.
Antecederam-me
na ocupação desta Cátedra duas pessoas de notáveis qualidades morais, mentais e
espirituais: o professor e historiador Odilon Nunes e o sacerdote e também
historiador, Padre Cláudio Melo.
O
primeiro deles nasceu em Amarante no dia 10 de outubro de 1899 e faleceu nesta
Capital em data de 22 de dezembro de 1989. Foi Diretor de Instrução Pública do
Estado, Inspetor Técnico do ensino e Coordenador do Censo Estatístico Escolar,
Educador emérito. Legou-nos volumosa bibliografia: Estudos da História do
Piauí, Raízes de Terceiro Mundo, Súmula da História do Piauí, O Piauí na
História, Economia e Finanças, Pesquisa para a História do Piauí, monumental
tarefa reunida em quatro volumes.
O
segundo ocupante, Padre Cláudio Melo, de origem modesta, é de Campo Maior.
Nasceu em 02 de março de 1938 e desapareceu no dia 17 de janeiro deste ano
(1998), em Teresina. Bertrand Russel asseverou que “a humildade é a moldura do
talento”. Se assim é, ele muito honrou a cadeira em que sentou. Os
dicionaristas Adrião José Neto e Wilson Carvalho Gonçalves e o pesquisador José
Lopes dos Santos registraram a figura desta criatura boníssima e deste cérebro fecundo.
Professor universitário, poliglota e historiador. Doutor em Sociologia pela
Pontifícia Universidade de Santo Tomaz de Aquino, em Roma, Chefe do Patrimônio
Artístico e Cultural do Piauí, Membro do Conselho Estadual de Cultura,
Conselheiro do Projeto Editorial Petrônio Portela. Comendador da Ordem Estadual
do Mérito Renascença do Piauí. Sentindo a vocação sacerdotal, ingressou no
Seminário Maior, dando início à sua formação teológica. Padre Cláudio Melo fez
o curso de Teologia e Filosofia no Seminário de Olinda. Foi vigário das
paróquias de São Pedro do Piauí, São Miguel do Tapuio e Teresina. Coordenador e
professor do Curso de Teologia da Universidade Federal do Piauí.
Todos
sentimos muita saudade do Padre Cláudio. Na certa, está com Deus desde que nos
deixou.
Herculano
Moraes, em seu Visão Histórica da
Literatura Piauiense, revela:
“O Padre Cláudio Melo começou suas pesquisas
históricas com a tese de doutorado desenvolvida durante o Curso de Ciências
Sociais realizado na Pontifícia Universidade de Santo Tomaz de Aquino, em Roma,
na Itália. Depois dessa experiência e conhecendo mais intimamente os grandes
paradoxos que a realidade piauiense preojetava, passou a escrever sobre os que
se sacrificaram pelo desenvolvimento regional e também sobre temas que levassem
às reflexões necessárias a qualquer projeto de mudança social e política de uma
comunidade”.
Mais adiante, na mesma obra, comentando o
trabalho A Pobreza Piauiense, da autoria do virtuoso sacerdote, realça:
“...
é um livro seguro, revelador do grande
talento de Claudio Melo para a pesquisa de nossas raízes”.
Sobre sua pessoa, colhemos ainda o depoimento
do crítico Francisco Miguel de Moura, no belo discurso de boas vindas que
proferiu por ocasião do ingresso de meu segundo antecessor neste Cenáculo:
“Conheço-o pessoalmente de bem pouco tempo,
mas o suficiente para saber do seu boníssimo caráter, temperado na luta pelas
grandes causas, quer no Ministério da Igreja, quer como pessoa simples, amiga,
alegre, sincera e agradável” – ao que acrescento as virtudes do piedoso
sacerdote e o fulgor da erudição do historiador verdadeiro, somada à sua sólida
formação humanística e cristã.
Minhas
senhoras e meus senhores:
Devo
deixar registrado neste pronunciamento, por uma questão de reconhecimento, o
penhor da minha gratidão a pessoas a quem devo muito do que sou. Duas delas já
não estão entre nós: minhas tias Emília Resende e Cecília Costa, que tomaram o
encargo e a missão de orientar meus passos pelos caminhos da vida.
Nair
de Brito Magalhães Costa, minha querida mãe, acompanhou, com desvelo e
preocupação, minhas peraltices e traquinagens, e alegrou-se com minha subida
pelos degraus da vida e do saber. Só me deu ternura e carinho, e amor. Muito,
muito amor. Amor de sobra. Deus a levou para junto de si, para o seu regaço
sagrado.
Francelino
Valente da Costa Filho, meu pai, aqui presente, vergando ao peso dos seus
noventa e um janeiros, exemplo de trabalho, honradez e honestidade, seguiu
minha formação instintiva e moral. Mesmo estando longe, encontrava-se perto de
mim, como agora, unidos os dois pelos invisíveis laços do respeito mútuo e da
amizade pura.
Júlia
Lima Magalhães, minha santa Lilinha, que comigo atravessou mais de trinta anos
de paciência, afeto, dedicação, renúncia e compreensão, deu-me dois filhos
maravilhosos – o professor Jomali e o advogado Joseli, - frutos de um amor
verdadeiro, e motivo de imenso orgulho e de constantes e renovadas alegrias de
seus pais.
Amigos:
Na luta incessante contra as adversidades da vida, tive a felicidade de contar
com a ajuda e o apoio de muitos amigos leais, cujos nomes me esquivo de
declinar nesta hora, por serem tantos, que me arriscaria a ser traído pela
memória, cometendo uma imperdoável injustiça. Estes estarão sempre no meu
coração.
Ao
poeta Francisco Miguel de Moura, velho amigo e companheiro, que prefaciou dois
de meus livros, deixo consignada aqui minha gratidão por haver aceitado o
convite para me receber neste templo das letras piauienses.
Agradeço
a todos quantos nos enobrecem com suas preciosas presenças nesta noite tão
importante para mim.
Senhores
Acadêmicos:
Peço
licença para me sentar entre Vossas Excelências, pois fostes vós que me
convocastes, em eleição livre e democrática, para ocupar a Cadeira 34 desta
Academia de Letras.
Se
assim decidistes, é porque achastes que eu o mereço.
Pois
muito obrigado por haverdes escolhido um convencido contador de estórias e um
humilde servo de Deus para ser vosso companheiro.
É
este o vosso desejo e o meu desígnio, a vontade de nosso Pai Celeste, princípio
de tudo e primeiro na ordem espiritual.
Não
preciso dizer, mas, na verdade, sinto-me honrado em participar desta confraria
de homens letrados. E, para justificar imensa honra, prometo empregar todo o
meu esforço, usar toda a minha razão, colocar, enfim, todo o meu ser, na
esperança de me manter à altura da elevada e importante missão que me
confiastes nesta Casa de Lucídio Freitas, estuário natural da cultura deste
grande Estado."
(COSTA, José
Magalhães da. Discurso de Posse na Cadeira de nº 34 da Academia Piauiense de
Letras. In: Revista da Academia Piauiense de Letras; nº 56; Ano LXXXI. Teresina:
APL, 1998; p. 115-124).
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