domingo, 6 de novembro de 2016

Memória Prosaica

  




DISCURSO DE POSSE DE JOSÉ MAGALHÃES DA COSTA NA ACADEMIA PIAUIENSE DE LETRAS

 

José Magalhães da Costa 




"Chego a esta Casa de Letras, o mais elevado sodalício literário do meu Estado-natal, sem vaidade, mas com justificado orgulho, por haver percorrido um longo caminho, vindo da minha querida Piracuruca, onde através das professoras Dalila e Hesíchia, iniciei e aprendi as primeiras letras e os rudimentos do idioma pátrio. Lá tive, também, como professor, José Bitencourt Pereira, por cujas mãos passaram várias gerações de estudantes. A estes primeiros mestres rendo, na oportunidade, o preito de minha imorredoura gratidão e eterna saudade.
Quando ainda adolescente, meu professor de Português, Valdir Bastos, aqui em Teresina, passou uma tarefa à classe: redação sobre o tema “A Tapera”. Sendo eu um menino do interior, familiarizado com as pobres habitações da região, apresentei meu trabalho e, para surpresa minha, obtive o grau máximo. A partir dali, senti despertar em mim a inclinação para a literatura escrita. Passei, então, a ler as obras de bons autores, todos os livros que me caiam nas mãos, numa verdadeira febre de leitura. Lembro: a leitura de um conto de Fontes Ibiapina, em que ele retrata a figura de um valentão num forró, levou-me a optar por esse gênero como a forma de melhor expressar o que via e sentia de minha terra e de minha gente. Comecei a escrever para o jornalzinho do meu colégio, o “Demóstenes Avelino”, tornando-me então líder estudantil. Nesta condição, e já como universitário, idealizei, fundei e dirigi o Núcleo dos Estudantes Universitários do Piauí (NEUP), entidade que ainda hoje congrega e acolhe alunos piauienses de curso superior em Fortaleza, tendo também ali participado ativamente da política estudantil, na qualidade de membro do Diretório Acadêmico Clóvis Beviláqua da Faculdade de Direito da Universidade Federal do Ceará, onde fiz meu curso Jurídico. Na Capital Alencarina, colaborei durante o curso de Direito, com regularidade, para jornais e suplementos literários locais em voga, enviando contos e crônicas e chegando a ganhar alguns concursos, o que muito me incentivou a concorrer em certames de abrangência nacional do gênero, como foi o caso do “Companhia Minas Brasil”, promovido pela Revista Alterosa, de Belo Horizonte, em que saí premiado com o conto “O Bilhete”. Simultaneamente, escrevia para o Almanaque da Parnaíba, mandando matérias e ajudando na revisão deste tradicional anuário, por um período de dez anos consecutivos.
De regresso ao Piauí, formado em Direito, continuei fazendo literatura, dirigindo suplementos literários e fundando a entidade de classe do escritor, buscando não só a divulgação das letras da terra, como o fortalecimento e a elevação do prestígio do autor piauiense. Assim é que, no início da década de 70, em companhia de outros intelectuais e idealistas, entre os quais alguns que hoje integram esta Academia, a exemplo de Francisco Miguel de Moura, Hardi Filho, Herculano Moraes, William Palha Dias, J. Miguel de Matos, e o próprio Presidente, Professor Celso Barros Coelho, consegui criar a seccional piauiense da União Brasileira de Escritores, entregue, nos dias atuais, a literatos da estirpe deum Cid Teixeira de Abreu e de um Kenard Kruel, entre outros de mesmo valor.
De lá para cá, aí já como magistrado, dei prosseguimento ao meu trabalho de produção e difusão de obras de conterrâneos nossos, descobrindo nomes e realçando valores, despertando vocações e revelando talentos. Paralelamente, escrevia e editava, com grande dificuldade, meus livros de contos, maneira melhor que encontrei para externar minha criatividade. Entendo, como muitos, ser o homem o mais universal dos seres habitantes deste Planeta, vivendo os mesmos sentimentos de tristeza e alegria, de dor e prazer, de certeza e de dúvida, pêndulo eterno oscilando entre o bem e o mal. Como contador de histórias, abracei o conto de cunho regional, quando tive a oportunidade de conhecer a obra dos mais expressivos cultores desta especialidade literária, destacadamente os mineiros Afonso Arinos e Guimarães Rosa, os gaúchos João Simões Lopes Neto e Darcy Azambuja, os paulistas Valdomiro Silveira e Monteiro Lobato, os cearenses Herman Lima e Moreira Campos, além da rica produção literária de Fontes Ibiapina, figura de destaque do conto genuinamente piauiense e criador de tipos, que eternizou em seus numerosos romances e em mais de uma dezena de livros de histórias curtas, gênero este onde também reconheço caminhar com mais segurança e maior desenvoltura, em razão da própria convivência com o povinho deste Chão de meu Deus, com quem, aliás, me identifico, e cujo linguajar procuro retratar com fidelidade, sem descer, no entanto, ao comum da escrita, como já o fizeram muitos regionalistas; enquanto isto, percorria distantes comarcas do meu Piauí, como Juiz de Direito, em contato direto e permanente com o homem e seus problemas, no manuseio de autos processuais, onde encontrei matéria com fartura para a feitura de minhas histórias, além de exercer a profissão de professor secundarista, que, de igual modo, me deu elementos e dados necessários à elaboração de meus contos, espécie – como disse ainda agora – que escolhi como forma de externar minha criação. Como contista, considero-me apenas um contador de casos, embora esteja convencido de que não é tão simples assim a arte de narrar um pequeno romance. Faço, portanto – e quero chamar a atenção dos senhores para isso – uma literatura transposta, com base em tipos humanos que conheço muito bem através da convivência com a gente do meu rincão piracuruquense, e por estar metido constantemente no meio dos caboclos da fazenda Curral de Pedra, de minha tia Emília, vendo e estudando os costumes, superstições, divertimentos e brincadeiras, profissão ou meios de vida, sonhos e desejos, angústias e frustrações, lutas e vitórias, tramas e dramas desse povo. A vida dele, enfim. São casos ouvidos, vividos e estudados, criados pela força da ficção, onde o social revela o homem. Narrativas de tipos comuns de gente, encontrados aqui e alhures. Criaturas feitas de carne e osso como todos nós, que precisam ser olhadas na grandeza de seres humanos, de pobres filhos de Nosso Senhor. Uso, portanto, uma linguagem verdadeira, recriada, que aproveito para fazer denúncias ou mostrar hábitos, fazer criaturas vivas. Meus personagens são pessoas simples, humildes, diversas, vivendo assim na cidade como no campo, mas sempre retirados da própria vida, nas suas atribuições e enrascadas, na realidade de suas existências rasteiras, de seu viver miúdo. São nossos irmãos. Essa gente tem sido muito bem recebida no papel. Falta-lhe, porém, acolhida no coração de muitos, especialmente daqueles que têm o poder nas mãos e podem tudo.

Minhas senhoras, meus senhores:
O patrono da cadeira 34, na qual tomo posse hoje, é figura exponencial da história e da cultura piauienses. Por um destes desígnios do Destino, é de Piracuruca, como eu. Dele ainda sou parente, pela árvore genealógica dos Brito.
Anísio de Brito Melo nasceu em 26 de setembro de 1886 e morreu em 17 de abril de 1946, aqui em Teresina. Foi professor e historiador, odontólogo e militar. Detentor de admirável cultura científica, bélica e humanística. Fundou e dirigiu o Instituto Histórico e Geográfico Piauiense, e integrou outras entidades congêneres. De renome nacional, foi Conselheiro Municipal de Teresina. Tem trabalhos da mais alta importância, figurando no Dicionário Histórico, Geográfico e Etimológico Brasileiro, Rio de Janeiro – 1922. Deu nome ao Museu histórico do Piauí, conhecido como “Casa Anísio Brito”, um dos relicários de nossa História. Deixou inéditos dois escorços no campo da historiografia e da política social: História do Piauí e Páginas Piauienses. Não era de se exigir mais de um extraordinário polígrafo como ele. Entre seus inúmeros trabalhos publicados em livros, ressaltamos: Contribuição do Piauí à Guerra do Paraguai, Fazendas Nacionais no Piauí, O Município Piauiense, Adesão do Piauí à Confederação do Equador, Os Balaios no Piauí, Independência do Piauí, Do Ensino Primário.  
Confesso que me sinto pequenino perante a envergadura intelectiva de um homem deste porte. A seu respeito, disse Francisco Miguel de Moura no discurso em que recebeu nesta Casa o Padre Cláudio Melo:
Anísio Brito tem lugar de honra no coração de todo pesquisador que conhece a história de nosso Arquivo Público. Ele foi a vida daquela Casa, por ela devotou um extremado amor de mãe e por ela consumou sua saúde e deu a sua vida!
O escritor Wilson Carvalho Gonçalves, em seu Grande Dicionário Histórico-Biográfico Piauiense, e preciso e veraz:
Anísio Brito foi pesquisador de muito mérito. Deu à nossa historiografia uma valiosa contribuição no campo da pesquisa e da análise dos fatos polêmicos da história do Piauí, realizando um trabalho de cunho científico e revisionista, procurando esclarecer a verdade. Legou-nos um acervo de obras preciosas para a nossa história”.
Antecederam-me na ocupação desta Cátedra duas pessoas de notáveis qualidades morais, mentais e espirituais: o professor e historiador Odilon Nunes e o sacerdote e também historiador, Padre Cláudio Melo.
O primeiro deles nasceu em Amarante no dia 10 de outubro de 1899 e faleceu nesta Capital em data de 22 de dezembro de 1989. Foi Diretor de Instrução Pública do Estado, Inspetor Técnico do ensino e Coordenador do Censo Estatístico Escolar, Educador emérito. Legou-nos volumosa bibliografia: Estudos da História do Piauí, Raízes de Terceiro Mundo, Súmula da História do Piauí, O Piauí na História, Economia e Finanças, Pesquisa para a História do Piauí, monumental tarefa reunida em quatro volumes.
O segundo ocupante, Padre Cláudio Melo, de origem modesta, é de Campo Maior. Nasceu em 02 de março de 1938 e desapareceu no dia 17 de janeiro deste ano (1998), em Teresina. Bertrand Russel asseverou que “a humildade é a moldura do talento”. Se assim é, ele muito honrou a cadeira em que sentou. Os dicionaristas Adrião José Neto e Wilson Carvalho Gonçalves e o pesquisador José Lopes dos Santos registraram a figura desta criatura boníssima e deste cérebro fecundo. Professor universitário, poliglota e historiador. Doutor em Sociologia pela Pontifícia Universidade de Santo Tomaz de Aquino, em Roma, Chefe do Patrimônio Artístico e Cultural do Piauí, Membro do Conselho Estadual de Cultura, Conselheiro do Projeto Editorial Petrônio Portela. Comendador da Ordem Estadual do Mérito Renascença do Piauí. Sentindo a vocação sacerdotal, ingressou no Seminário Maior, dando início à sua formação teológica. Padre Cláudio Melo fez o curso de Teologia e Filosofia no Seminário de Olinda. Foi vigário das paróquias de São Pedro do Piauí, São Miguel do Tapuio e Teresina. Coordenador e professor do Curso de Teologia da Universidade Federal do Piauí.
Todos sentimos muita saudade do Padre Cláudio. Na certa, está com Deus desde que nos deixou.
Herculano Moraes, em seu Visão Histórica da Literatura Piauiense, revela:
O Padre Cláudio Melo começou suas pesquisas históricas com a tese de doutorado desenvolvida durante o Curso de Ciências Sociais realizado na Pontifícia Universidade de Santo Tomaz de Aquino, em Roma, na Itália. Depois dessa experiência e conhecendo mais intimamente os grandes paradoxos que a realidade piauiense preojetava, passou a escrever sobre os que se sacrificaram pelo desenvolvimento regional e também sobre temas que levassem às reflexões necessárias a qualquer projeto de mudança social e política de uma comunidade”.
 Mais adiante, na mesma obra, comentando o trabalho A Pobreza Piauiense, da autoria do virtuoso sacerdote, realça:
“... é um livro seguro, revelador do grande talento de Claudio Melo para a pesquisa de nossas raízes”.
 Sobre sua pessoa, colhemos ainda o depoimento do crítico Francisco Miguel de Moura, no belo discurso de boas vindas que proferiu por ocasião do ingresso de meu segundo antecessor neste Cenáculo:
Conheço-o pessoalmente de bem pouco tempo, mas o suficiente para saber do seu boníssimo caráter, temperado na luta pelas grandes causas, quer no Ministério da Igreja, quer como pessoa simples, amiga, alegre, sincera e agradável” – ao que acrescento as virtudes do piedoso sacerdote e o fulgor da erudição do historiador verdadeiro, somada à sua sólida formação humanística e cristã.

Minhas senhoras e meus senhores:
Devo deixar registrado neste pronunciamento, por uma questão de reconhecimento, o penhor da minha gratidão a pessoas a quem devo muito do que sou. Duas delas já não estão entre nós: minhas tias Emília Resende e Cecília Costa, que tomaram o encargo e a missão de orientar meus passos pelos caminhos da vida.
Nair de Brito Magalhães Costa, minha querida mãe, acompanhou, com desvelo e preocupação, minhas peraltices e traquinagens, e alegrou-se com minha subida pelos degraus da vida e do saber. Só me deu ternura e carinho, e amor. Muito, muito amor. Amor de sobra. Deus a levou para junto de si, para o seu regaço sagrado.
Francelino Valente da Costa Filho, meu pai, aqui presente, vergando ao peso dos seus noventa e um janeiros, exemplo de trabalho, honradez e honestidade, seguiu minha formação instintiva e moral. Mesmo estando longe, encontrava-se perto de mim, como agora, unidos os dois pelos invisíveis laços do respeito mútuo e da amizade pura.
Júlia Lima Magalhães, minha santa Lilinha, que comigo atravessou mais de trinta anos de paciência, afeto, dedicação, renúncia e compreensão, deu-me dois filhos maravilhosos – o professor Jomali e o advogado Joseli, - frutos de um amor verdadeiro, e motivo de imenso orgulho e de constantes e renovadas alegrias de seus pais.

Amigos: 
Na luta incessante contra as adversidades da vida, tive a felicidade de contar com a ajuda e o apoio de muitos amigos leais, cujos nomes me esquivo de declinar nesta hora, por serem tantos, que me arriscaria a ser traído pela memória, cometendo uma imperdoável injustiça. Estes estarão sempre no meu coração.
Ao poeta Francisco Miguel de Moura, velho amigo e companheiro, que prefaciou dois de meus livros, deixo consignada aqui minha gratidão por haver aceitado o convite para me receber neste templo das letras piauienses.
Agradeço a todos quantos nos enobrecem com suas preciosas presenças nesta noite tão importante para mim.

Senhores Acadêmicos:
Peço licença para me sentar entre Vossas Excelências, pois fostes vós que me convocastes, em eleição livre e democrática, para ocupar a Cadeira 34 desta Academia de Letras.
Se assim decidistes, é porque achastes que eu o mereço.
Pois muito obrigado por haverdes escolhido um convencido contador de estórias e um humilde servo de Deus para ser vosso companheiro.
É este o vosso desejo e o meu desígnio, a vontade de nosso Pai Celeste, princípio de tudo e primeiro na ordem espiritual.
Não preciso dizer, mas, na verdade, sinto-me honrado em participar desta confraria de homens letrados. E, para justificar imensa honra, prometo empregar todo o meu esforço, usar toda a minha razão, colocar, enfim, todo o meu ser, na esperança de me manter à altura da elevada e importante missão que me confiastes nesta Casa de Lucídio Freitas, estuário natural da cultura deste grande Estado."

   

(COSTA, José Magalhães da. Discurso de Posse na Cadeira de nº 34 da Academia Piauiense de Letras. In: Revista da Academia Piauiense de Letras; nº 56; Ano LXXXI. Teresina: APL, 1998; p. 115-124).                                        

    
 



 

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