Memória Prosaica...
SOBRE ANÍSIO BRITO E A ORGANIZAÇÃO DO ARQUIVO PÚBLICO DO PIAUÍ
(excerto do discurso de posse de Odilon Nunes na Cadeira nº 34 da Academia Piauiense de Letras, cujo patrono é Anísio Brito)
Odilon Nunes
[...]
Como
dissemos, foi nessa fase brilhante de nossa história que Anisio Brito chegou a
Teresina e deu início à sua vida de homem público. Tinha, então, 25 anos e
viera de Piracuruca, sua terra natal, onde clinicava como cirurgião-dentista.
Foi
logo nomeado professor no mesmo dia em que o foram Lucídio Freitas e Cristino
Castelo Branco. Executava-se, então, a grande reforma de ensino de 1910. era
preciso adaptar o aparelho escolar piauiense a novos padrões. Com essa
finalidade, estiveram no interior em serviço da inspeção escolar, Mário
Batista, João Pinheiro, a quem muito deve o Piauí no aprimoramento de suas
instituições educacionais. Anísio Brito, também prestou serviços nesse setor.
Duma vez visitou dez municípios do norte do Estado, quando em Parnaíba inaugurou
o "Miranda Osório", primeiro grupo escolar em cidade do interior.
Foi
professor de História, de Português, Literatura, redator-chefe da Imprensa
Oficial, da qual foi também diretor, diretor do Liceu Piauiense, por quatro
vezes diretor-geral da Instrução Pública, mais tarde Departamento de Educação,
hoje Secretaria de Educação. Desde 1928 era diretor efetivo do Arquivo Público,
hoje Casa Anísio Brito. Aí é onde prestaria seu maior serviço à cousa pública.
Dentro
em pouco, Anísio abandonou a profissão de cirurgião-dentista, e entrega-se
inteiramente à vida intelectual. Senhor de grande erudição em História do
Piauí, muito nos poderia ter deixado em contribuição escrita, se não fora o
exaustivo labor que lhe impuseram a
burocracia e o magistério a que foi chamado e a que se dedicou por largos anos
de trabalho fecundo, pautado em normas de estrito interesse público.
Contudo,
não são poucos os trabalhos literários deixados por Anísio. Sobre educação,
podemos citar "Ligeira notícia sobre o ensino público", "Do
ensino primário" e "A reforma atual e o ensino normal e
secundário"; neste, estuada a reforma de 1910, reforma de grande
significação na renovação de nossas escolas.
Nesses
trabalhos, estuda também os vícios e inconveniências do método de Alencastre adotado
nas escolas do Piauí logo após a Independência, e ainda as reformas do ensino
realizadas posteriormente, o crescimento de nosso aparelho escolar, os
trabalhos manuais nas escolas primárias, o desenho, o ensino profissional,
critica a ação dos governantes quando diz: "Eis por que se passam governos
e se muda de regimes políticos e o problema dos problemas permanece o mesmo, em
uma estabilidade que produz desânimo aos que o conhecem e o estudam". Em
1922 já pedia o ensino normal em cinco anos e que em cada cadeira fosse dada a
metodologia de sua disciplina. Para a época, em nosso meio, eram ideias
precursoras, que só se realizariam após um decênio. Com entusiasmo, prova a
preexistência da mulher como educadora da infância, e exibe sua proficiência no
assunto. Em suas administrações, introduz vários melhoramentos no ensino,
especialmente em música e educação física.
Entre
seus trabalhos sobre história, podemos citar: "A quem pertence a
prioridade histórica no descobrimento do Piauí?", "A adesão do Piauí
à Confederação do Equador", "Os Balaios no Piauí",
"Contribuição do Piauí à Guerra do Paraguai", "Ligeira notícia
sobre o jornalismo", "Piracuruca", e várias páginas do verbete
"Piauí", no "Dicionário Histórico, Geográfico e Etnográfico do
Brasil", publicado no Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro".
Afora
várias conferências e outros estudos que enriquecem a imprensa local, na qual
militou, deixou-nos, também, duas obras inéditas: "Páginas
Piauienses" e "História do Piauí".
Foi
sócio fundador do Instituto Geográfico e Histórico Piauiense do qual foi
presidente, sócio correspondente do Instituto Histórico e Geográfico do Pará,
do Instituto Histórico do Ceará, e do Instituto Geográfico e Histórico da
Bahia, e também sócio da Sociedade Numismática Brasileira.
Educador,
historiador, Anísio Brito foi, sobretudo, administrador honesto, esclarecido e
confiante em nossos destinos, cujas raízes se aprofundam em tradições de
dignidade, bravura e capacidade de trabalho. Firmou essa opinião, quando diz:
Se,
na vida, todas as conquistas são o resultado da elaboração da coletividade,
através dos fatos de nossa história, em todos os tempos, jamais o valor
piauiense sofreu qualquer solução de continuidade, animando aos pósteros um
passado que é caução preciosa ao nosso futuro.
Assim
propende para a história pragmática, tendência que sempre revelam os
historiadores que, como ele, também se dedicam ao magistério. Contudo, escreveu
história genética, pois vemos em seus trabalhos a tendência para o revisionismo
histórico, especialmente sob o ponto de vista factual, e também sua notável
contribuição ao incorporar à nossa historiografia valiosos documentos inéditos,
ampliando as fronteiras de nossos conhecimentos.
Quando
agita o estudo da prioridade de Domingos Jorge Velho no assentamento das bases
econômicas e demográficas do Piauí, ampara-se no teórico do naturalismo que, ao
lado de Renan e de Fustel de Coulanges, na segunda metade do século passado,
era um dos três grandes historiadores franceses, Hipolito Taine, e evoca seus
ensinamentos ao dizer que "a História não é intangível. Fatos históricos
aceitos pela crítica, nem sempre encerram a verdade, que, só depois, à luz de
documentos, se pode restabelecer".
Já
sob o ponto de vista interpretativo, quando pede revisão no estudo da Balaiada,
ampara-se em Félix Pacheco que, em seu "O Publicista do Império"
dissera: "Abram-se os livros históricos que possuímos e, página por
página, analisando-os, chegaremos à conclusão tristíssima, mas infelizmente
inconcussa e real, de que lhes falta a intuição, o método, o espírito
filosófico e o senso crítico indispensável". E comenta Anísio Brito:
"Assim a história do Brasil, pela iniciativa do que possui ele de mais
culto nas letras históricas, tem sofrido sensíveis revisões, impostas mesmo por
necessidades inadiáveis...". E continua:
Relativamente
ao Piauí, tivemos ocasião de dizer em artigo de imprensa local que desde o seu
descobrimento e fase colonial às lutas separatistas e sequentes, abrangendo a
adesão à Revolução de 1824, à Balaiada, há muitas lacunas a preencher, omissões
injustas que reparar, reivindicações que fazer.
Nesse
estudo, separar-se de Alencastre que tanto valorizou, e pede juízo mais
equitativo a respeito do Visconde da Parnaíba que julga a figura central de
nossa história.
Quando
estuda a Independência no Piauí, opina que a data comemorativa de nossa adesão
ao movimento de emancipação deveria ser a de 19 de outubro, com a insurreição
de Parnaíba, e não 24 de janeiro, com a proclamação de Oeiras. Diz ele:
"Dentre as muitas revisões de nossa história, que se impõem, certamente a
data de dezenove de outubro ocupa o primeiro plano". E logo adiante:
O
movimento emancipacionista piauiense, é inegável, partiu da periferia para o
centro; não houve solução de continuidade do grito patriótico de 19 de outubro.
fugiram, é certo, as principais figuras daquele audacioso lance histórico para,
além, procurar elementos indispensáveis na conjuntura em que se viram, após a
proclamação.
É
verdade. Como consequência dessa reivindicação, é que sob os auspícios de José
Auto de Abreu, então deputado na Assembleia Estadual, veio a Lei nº 176, de 30
de agosto de 1937, que institui o "Dia do Piauí".
Seus
trabalhos escritos são súmulas, estudos rápidos, porém objetivos. Quis
dinamizar a pesquisa histórica no Piauí. Esse foi seu propósito máximo. Daí seu
desvelo pelo Arquivo Público que enriqueceu com valiosa coleta de documentos.
Como historiador e professor de história, bem sabia, como diria posteriormente
nosso conterrâneo Charles Kecskemeti, Secretário do Conselho Internacional de
Arquivos, que Nada afirma melhor a solidariedade interna das comunidades que o
sentimento de continuidade, da tradição histórica". E ainda:
"Quadros, estátuas e ruínas de castelos, armas e objetos encontrados nas
tumbas, poemas épicos e cantos folclóricos, tudo pode contribuir para
representar-nos o passado. Sem embargo, a matéria-prima essencial da ciência
histórica se conserva nos arquivos”.
Não
podemos também deixar de dar o testemunho de José Honório Rodrigues, entre nós,
a maior autoridade no assunto. Dissera anteriormente:
Sem
os arquivos da geração passada, grande parte da experiência desta geração
estaria definitivamente perdida para nós e o mundo sofreria um grande abalo,
sem a consulta aos planos dos predecessores. Os historiadores, economistas e
políticos encontrar-se-iam despojados, às vezes, dos fatos essenciais. A
destruição de um papel aparentemente desinteressante pode resultar na perda de
uma chave para a compreensão de um fato, de um problema, de uma questão.
Mas
Anísio não procurou apenas enriquecer e preservar o repositório de nossas
tradições, base da continuidade de nossa comunidade. Intentou também predispor
a documentação para a pesquisa histórica.
Já
tivemos oportunidade de referir-nos a Renan, que há mais de século dizia que as
pesquisas eruditas continuarão entravadas e incompletas até que esse trabalho
de predisposição conveniente se realize de maneira definitiva. Vários eruditos
secundaram Renan no estabelecimento às autoridades governamentais. E mais
recentemente, o Congresso Extraordinário do conselho Internacional de Arquivos,
reunido em maio de 1966, em Washington, com representantes de 53 países,
representantes das Nações Unidas e da UNESCO, recomendou que sejam providos os
arquivos de pessoal especializado e suficiente, bem como que se fomente a
publicação de fontes documentais para facilitar o acesso e a utilização de seu
material.
Entre
nós, no momento, é pioneiro dessas ideias, ainda o mesmo José Honório Rodrigues
que, desde 1952, apregoa: "A tarefa é, portanto, nacional e urgente. O
futuro dos documentos históricos é uma questão nacional, do Estado e dos que
têm espírito público. O problema é duplo: preservar a integridade dos
documentos e torná-los conhecidos, isto é, públicos, pelas listas, inventários
e repertórios".
Anísio
Brito, ao assumir as funções de diretor do Arquivo, procurou imediatamente
enriquecê-lo e dar organização conveniente ao acervo documental. Fez ainda a
obtenção de documentos valiosos, ou suas cópias, nos municípios do Estado, bem
como nas unidades da Federação em cujos arquivos havia papéis referentes ao
Piauí. Conseguiu cópias autênticas de todas as sesmarias registradas no Arquivo
Público do Pará. Sugeriu também pesquisas nos arquivos da Bahia, Pernambuco, no
Arquivo Nacional, na Biblioteca Nacional, o que infelizmente não foi feito.
Anísio
não era um técnico. Mas seu espírito público, o amor que consagrava à terra
natal aguçaram-lhe a intuição, enrobusteceram-lhe o senso prático.
Matias
Olímpio, em seu último relatório, como Governador, à Assembleia Legislativa, ao
referir-se à Anisio diz: "Preocupa-se aquela autoridade em destacar, logo,
os documentos que se relacionem com os períodos de maior vulto de nossa
história, coordenando-os, para reunião em volumes especiais". Tratava-se
de documentos avulsos, peças esparsas, que após a revolução de 30 ele ainda
colhia e concatenava, agrupando-os em livros cartonados. É assim que surgiram
vários volumes sobre a Independência, Pinto Madeira, Guerra do Paraguai. Só com
referência à Balaiada, ele coligiu cerca de vinte volumes. Agora seu objetivo
seria a indicação do assunto e página de cada documento dos livros de registros
de correspondências das administrações, desde o período colonial.
Deu,
então, começo à publicação duma revista para a vulgarização de documentos e
estudos sobre o Piauí, a qual, entretanto, não chegou a circular. Foi quando
veio a Revolução de 30, e Anísio foi chamado para a direção do Departamento de
Ensino, um pouco depois. Passara pouco mais de sete anos no Arquivo Público,
para onde voltaria em 1942, já com a saúde profundamente abalada. Os últimos
dias que viveu no Arquivo constituíram um drama emocional. Quis recuperar o
tempo perdido. Como consequência, agravaram-se os males que o afligiam, e é
compelido a aposentar-se no ano imediato, para morrer um pouco mais tarde.
Senhores
Acadêmicos:
Vimos
em largos traços a contribuição de Anísio Brito às letras piauienses e também
sua capacidade de percepção e inteligência penetrante na organização do Arquivo
Público. Mas Anísio não procurou apenas enriquecer, preservar o repositório de
nossas tradições, predispô-lo para a pesquisa histórica. Providenciou a
aquisição de cópias autênticas dos trabalhos cartográficos de Gláucio, de
Simplício Dias da Silva, Martius, Dodt, referentes ao Piauí, como subsídios
para a organização futura da carta geográfica do Estado. Cuidou da biblioteca,
assentou as bases da pinacoteca, da mapoteca, duma coleção de numismática,
obtinha peças para o futuro museu já entregue às visitas públicas antes mesmo
de sua criação por lei, enfim, deixou-nos este monumento que é a Casa Anísio
Brito. e nesse monumento básico das tradições de nossa comunidade, nós bem o
sabemos, Senhores acadêmicos, Anísio Brito está presente, a exemplificar
espírito público, e continuará a falar, a falar para sempre à posteridade
piauiense.
(NUNES, Odilon.
Discurso de Posse na Cadeira de nº 34. In: Revista da Academia Piauiense de
Letras; 3º vol. Teresina: APL, 1972; p. 111-121).
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