segunda-feira, 7 de março de 2016


Memória Prosaica...



SOBRE ANÍSIO BRITO E A ORGANIZAÇÃO DO ARQUIVO PÚBLICO DO PIAUÍ

(excerto do discurso de posse de Odilon Nunes na Cadeira nº 34 da Academia Piauiense de Letras, cujo patrono é Anísio Brito)


Odilon Nunes





[...]


Como dissemos, foi nessa fase brilhante de nossa história que Anisio Brito chegou a Teresina e deu início à sua vida de homem público. Tinha, então, 25 anos e viera de Piracuruca, sua terra natal, onde clinicava como cirurgião-dentista.


Foi logo nomeado professor no mesmo dia em que o foram Lucídio Freitas e Cristino Castelo Branco. Executava-se, então, a grande reforma de ensino de 1910. era preciso adaptar o aparelho escolar piauiense a novos padrões. Com essa finalidade, estiveram no interior em serviço da inspeção escolar, Mário Batista, João Pinheiro, a quem muito deve o Piauí no aprimoramento de suas instituições educacionais. Anísio Brito, também prestou serviços nesse setor. Duma vez visitou dez municípios do norte do Estado, quando em Parnaíba inaugurou o "Miranda Osório", primeiro grupo escolar em cidade do interior.


Foi professor de História, de Português, Literatura, redator-chefe da Imprensa Oficial, da qual foi também diretor, diretor do Liceu Piauiense, por quatro vezes diretor-geral da Instrução Pública, mais tarde Departamento de Educação, hoje Secretaria de Educação. Desde 1928 era diretor efetivo do Arquivo Público, hoje Casa Anísio Brito. Aí é onde prestaria seu maior serviço à cousa pública.


Dentro em pouco, Anísio abandonou a profissão de cirurgião-dentista, e entrega-se inteiramente à vida intelectual. Senhor de grande erudição em História do Piauí, muito nos poderia ter deixado em contribuição escrita, se não fora o exaustivo labor  que lhe impuseram a burocracia e o magistério a que foi chamado e a que se dedicou por largos anos de trabalho fecundo, pautado em normas de estrito interesse público.



Contudo, não são poucos os trabalhos literários deixados por Anísio. Sobre educação, podemos citar "Ligeira notícia sobre o ensino público", "Do ensino primário" e "A reforma atual e o ensino normal e secundário"; neste, estuada a reforma de 1910, reforma de grande significação na renovação de nossas escolas.


Nesses trabalhos, estuda também os vícios e inconveniências do método de Alencastre adotado nas escolas do Piauí logo após a Independência, e ainda as reformas do ensino realizadas posteriormente, o crescimento de nosso aparelho escolar, os trabalhos manuais nas escolas primárias, o desenho, o ensino profissional, critica a ação dos governantes quando diz: "Eis por que se passam governos e se muda de regimes políticos e o problema dos problemas permanece o mesmo, em uma estabilidade que produz desânimo aos que o conhecem e o estudam". Em 1922 já pedia o ensino normal em cinco anos e que em cada cadeira fosse dada a metodologia de sua disciplina. Para a época, em nosso meio, eram ideias precursoras, que só se realizariam após um decênio. Com entusiasmo, prova a preexistência da mulher como educadora da infância, e exibe sua proficiência no assunto. Em suas administrações, introduz vários melhoramentos no ensino, especialmente em música e educação física.


Entre seus trabalhos sobre história, podemos citar: "A quem pertence a prioridade histórica no descobrimento do Piauí?", "A adesão do Piauí à Confederação do Equador", "Os Balaios no Piauí", "Contribuição do Piauí à Guerra do Paraguai", "Ligeira notícia sobre o jornalismo", "Piracuruca", e várias páginas do verbete "Piauí", no "Dicionário Histórico, Geográfico e Etnográfico do Brasil", publicado no Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro".


Afora várias conferências e outros estudos que enriquecem a imprensa local, na qual militou, deixou-nos, também, duas obras inéditas: "Páginas Piauienses" e "História do Piauí".


Foi sócio fundador do Instituto Geográfico e Histórico Piauiense do qual foi presidente, sócio correspondente do Instituto Histórico e Geográfico do Pará, do Instituto Histórico do Ceará, e do Instituto Geográfico e Histórico da Bahia, e também sócio da Sociedade Numismática Brasileira.


Educador, historiador, Anísio Brito foi, sobretudo, administrador honesto, esclarecido e confiante em nossos destinos, cujas raízes se aprofundam em tradições de dignidade, bravura e capacidade de trabalho. Firmou essa opinião, quando diz:



Se, na vida, todas as conquistas são o resultado da elaboração da coletividade, através dos fatos de nossa história, em todos os tempos, jamais o valor piauiense sofreu qualquer solução de continuidade, animando aos pósteros um passado que é caução preciosa ao nosso futuro.



Assim propende para a história pragmática, tendência que sempre revelam os historiadores que, como ele, também se dedicam ao magistério. Contudo, escreveu história genética, pois vemos em seus trabalhos a tendência para o revisionismo histórico, especialmente sob o ponto de vista factual, e também sua notável contribuição ao incorporar à nossa historiografia valiosos documentos inéditos, ampliando as fronteiras de nossos conhecimentos.


Quando agita o estudo da prioridade de Domingos Jorge Velho no assentamento das bases econômicas e demográficas do Piauí, ampara-se no teórico do naturalismo que, ao lado de Renan e de Fustel de Coulanges, na segunda metade do século passado, era um dos três grandes historiadores franceses, Hipolito Taine, e evoca seus ensinamentos ao dizer que "a História não é intangível. Fatos históricos aceitos pela crítica, nem sempre encerram a verdade, que, só depois, à luz de documentos, se pode restabelecer".


Já sob o ponto de vista interpretativo, quando pede revisão no estudo da Balaiada, ampara-se em Félix Pacheco que, em seu "O Publicista do Império" dissera: "Abram-se os livros históricos que possuímos e, página por página, analisando-os, chegaremos à conclusão tristíssima, mas infelizmente inconcussa e real, de que lhes falta a intuição, o método, o espírito filosófico e o senso crítico indispensável". E comenta Anísio Brito: "Assim a história do Brasil, pela iniciativa do que possui ele de mais culto nas letras históricas, tem sofrido sensíveis revisões, impostas mesmo por necessidades inadiáveis...". E continua:



Relativamente ao Piauí, tivemos ocasião de dizer em artigo de imprensa local que desde o seu descobrimento e fase colonial às lutas separatistas e sequentes, abrangendo a adesão à Revolução de 1824, à Balaiada, há muitas lacunas a preencher, omissões injustas que reparar, reivindicações que fazer.



Nesse estudo, separar-se de Alencastre que tanto valorizou, e pede juízo mais equitativo a respeito do Visconde da Parnaíba que julga a figura central de nossa história.


Quando estuda a Independência no Piauí, opina que a data comemorativa de nossa adesão ao movimento de emancipação deveria ser a de 19 de outubro, com a insurreição de Parnaíba, e não 24 de janeiro, com a proclamação de Oeiras. Diz ele: "Dentre as muitas revisões de nossa história, que se impõem, certamente a data de dezenove de outubro ocupa o primeiro plano". E logo adiante:



O movimento emancipacionista piauiense, é inegável, partiu da periferia para o centro; não houve solução de continuidade do grito patriótico de 19 de outubro. fugiram, é certo, as principais figuras daquele audacioso lance histórico para, além, procurar elementos indispensáveis na conjuntura em que se viram, após a proclamação.



É verdade. Como consequência dessa reivindicação, é que sob os auspícios de José Auto de Abreu, então deputado na Assembleia Estadual, veio a Lei nº 176, de 30 de agosto de 1937, que institui o "Dia do Piauí".


Seus trabalhos escritos são súmulas, estudos rápidos, porém objetivos. Quis dinamizar a pesquisa histórica no Piauí. Esse foi seu propósito máximo. Daí seu desvelo pelo Arquivo Público que enriqueceu com valiosa coleta de documentos. Como historiador e professor de história, bem sabia, como diria posteriormente nosso conterrâneo Charles Kecskemeti, Secretário do Conselho Internacional de Arquivos, que Nada afirma melhor a solidariedade interna das comunidades que o sentimento de continuidade, da tradição histórica". E ainda: "Quadros, estátuas e ruínas de castelos, armas e objetos encontrados nas tumbas, poemas épicos e cantos folclóricos, tudo pode contribuir para representar-nos o passado. Sem embargo, a matéria-prima essencial da ciência histórica se conserva nos arquivos”.


Não podemos também deixar de dar o testemunho de José Honório Rodrigues, entre nós, a maior autoridade no assunto. Dissera anteriormente:



Sem os arquivos da geração passada, grande parte da experiência desta geração estaria definitivamente perdida para nós e o mundo sofreria um grande abalo, sem a consulta aos planos dos predecessores. Os historiadores, economistas e políticos encontrar-se-iam despojados, às vezes, dos fatos essenciais. A destruição de um papel aparentemente desinteressante pode resultar na perda de uma chave para a compreensão de um fato, de um problema, de uma questão.



Mas Anísio não procurou apenas enriquecer e preservar o repositório de nossas tradições, base da continuidade de nossa comunidade. Intentou também predispor a documentação para a pesquisa histórica.


Já tivemos oportunidade de referir-nos a Renan, que há mais de século dizia que as pesquisas eruditas continuarão entravadas e incompletas até que esse trabalho de predisposição conveniente se realize de maneira definitiva. Vários eruditos secundaram Renan no estabelecimento às autoridades governamentais. E mais recentemente, o Congresso Extraordinário do conselho Internacional de Arquivos, reunido em maio de 1966, em Washington, com representantes de 53 países, representantes das Nações Unidas e da UNESCO, recomendou que sejam providos os arquivos de pessoal especializado e suficiente, bem como que se fomente a publicação de fontes documentais para facilitar o acesso e a utilização de seu material.


Entre nós, no momento, é pioneiro dessas ideias, ainda o mesmo José Honório Rodrigues que, desde 1952, apregoa: "A tarefa é, portanto, nacional e urgente. O futuro dos documentos históricos é uma questão nacional, do Estado e dos que têm espírito público. O problema é duplo: preservar a integridade dos documentos e torná-los conhecidos, isto é, públicos, pelas listas, inventários e repertórios".


Anísio Brito, ao assumir as funções de diretor do Arquivo, procurou imediatamente enriquecê-lo e dar organização conveniente ao acervo documental. Fez ainda a obtenção de documentos valiosos, ou suas cópias, nos municípios do Estado, bem como nas unidades da Federação em cujos arquivos havia papéis referentes ao Piauí. Conseguiu cópias autênticas de todas as sesmarias registradas no Arquivo Público do Pará. Sugeriu também pesquisas nos arquivos da Bahia, Pernambuco, no Arquivo Nacional, na Biblioteca Nacional, o que infelizmente não foi feito.


Anísio não era um técnico. Mas seu espírito público, o amor que consagrava à terra natal aguçaram-lhe a intuição, enrobusteceram-lhe o senso prático.


Matias Olímpio, em seu último relatório, como Governador, à Assembleia Legislativa, ao referir-se à Anisio diz: "Preocupa-se aquela autoridade em destacar, logo, os documentos que se relacionem com os períodos de maior vulto de nossa história, coordenando-os, para reunião em volumes especiais". Tratava-se de documentos avulsos, peças esparsas, que após a revolução de 30 ele ainda colhia e concatenava, agrupando-os em livros cartonados. É assim que surgiram vários volumes sobre a Independência, Pinto Madeira, Guerra do Paraguai. Só com referência à Balaiada, ele coligiu cerca de vinte volumes. Agora seu objetivo seria a indicação do assunto e página de cada documento dos livros de registros de correspondências das administrações, desde o período colonial.


Deu, então, começo à publicação duma revista para a vulgarização de documentos e estudos sobre o Piauí, a qual, entretanto, não chegou a circular. Foi quando veio a Revolução de 30, e Anísio foi chamado para a direção do Departamento de Ensino, um pouco depois. Passara pouco mais de sete anos no Arquivo Público, para onde voltaria em 1942, já com a saúde profundamente abalada. Os últimos dias que viveu no Arquivo constituíram um drama emocional. Quis recuperar o tempo perdido. Como consequência, agravaram-se os males que o afligiam, e é compelido a aposentar-se no ano imediato, para morrer um pouco mais tarde.


Senhores Acadêmicos:


Vimos em largos traços a contribuição de Anísio Brito às letras piauienses e também sua capacidade de percepção e inteligência penetrante na organização do Arquivo Público. Mas Anísio não procurou apenas enriquecer, preservar o repositório de nossas tradições, predispô-lo para a pesquisa histórica. Providenciou a aquisição de cópias autênticas dos trabalhos cartográficos de Gláucio, de Simplício Dias da Silva, Martius, Dodt, referentes ao Piauí, como subsídios para a organização futura da carta geográfica do Estado. Cuidou da biblioteca, assentou as bases da pinacoteca, da mapoteca, duma coleção de numismática, obtinha peças para o futuro museu já entregue às visitas públicas antes mesmo de sua criação por lei, enfim, deixou-nos este monumento que é a Casa Anísio Brito. e nesse monumento básico das tradições de nossa comunidade, nós bem o sabemos, Senhores acadêmicos, Anísio Brito está presente, a exemplificar espírito público, e continuará a falar, a falar para sempre à posteridade piauiense.








(NUNES, Odilon. Discurso de Posse na Cadeira de nº 34. In: Revista da Academia Piauiense de Letras; 3º vol. Teresina: APL, 1972; p. 111-121).                                        



                                                      
       


             


         

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