Cultura, Memória e História em Pesquisa...
AS LIÇÕES DO MESTRE FERNANDO BACELAR E O PENSAMENTO DE CONFÚCIO[1]
Augusto Brito
“O saber é saber que nada sabe; esta é a definição do verdadeiro
conhecimento”. Essa sentença é atribuída a um certo homem Kung, de Lu, que nasceu
na aldeia de Tsen, província de Shantung, em plena China feudal, no ano de 550
ou 551 a. C.[2]
Ensinava, ele, aos seus discípulos, que cada elemento da sociedade deve cumprir
com seu dever de forma correta, condicionando seus hábitos a serviço da
temperança do espírito e da eliminação dos excessos. No mundo ocidental, seu nome foi latinizado
para Confúcio, mas seus ensinamentos, de excepcional sabedoria, ainda permanecem
praticamente ignorados.
A doutrina de Confúcio tinha, como objetivo, a busca pela formação de
uma sociedade capaz, culturalmente instruída e disposta ao bem-estar comum. Seus
seguidores cuidaram em sintetizar os ensinamentos do mestre em um conjunto de obras,
base do hoje chamado “confucionismo histórico”, dividido em dois blocos: Os
quatro livros clássicos (A grande ciência; A doutrina da mediania; Analectas; e
Mêncio); e Os cinco livros sagrados (Shu-king ou Livro dos Documentos
Históricos; Shih-king ou Livro de Antigos Poemas; Yi-king ou Livro das
Mutações; Li-ki ou Livro de Antigos Ritos e Cerimônias; e Ch’un Ch’iu ou
Primavera e Outono). Em seu “Elogio da Doutrina Mediana”, Confúcio ensina que
“Aquilo que o céu outorgou chama-se Natureza; a harmonia com essa natureza chama-se
Caminho do Dever; a ordenação desse caminho chama-se Instrução”.[3]
“O Mestre disse: não é grave se os homens não te conhecem; grave é se tu
não os conheces”. Na sociedade piracuruquense da primeira metade do século XIX,
surgiu uma personalidade que parecia conhecer e assimilar, com curiosa
perfeição, o ideário do milenar filósofo chinês. Seus valores, aplicados à
coisa pública, ao legalismo e à pedagogia, assumiram fundamental importância no
desenvolvimento da Vila, em especial no processo educacional da juventude
local, introduzindo-a nos segredos maravilhosos das letras, dos números e do
pensamento: o professor Fernando Bacelar.
O cidadão Fernando Pereira Bacelar nasceu, provavelmente, em 1815 ou 1816,
na então freguesia de Valença, torrão de grande importância histórica por ter
abrigado um dos primeiros arraiais de bandeirantes na Capitania do Piauí.
“Escolhe um trabalho que gostes, e não terás que trabalhar nem um dia em
tua vida”. A vocação de Fernando Bacelar para as atividades relacionadas ao
serviço publico se evidenciou desde a sua juventude. Ainda em sua cidade natal,
registra-se ter ocupado diversos cargos, tais como: professor público, agente
dos Correios, tabelião e juiz de paz.[4]
“Pode se tirar de um general seu exército, mas não de um homem sua
vontade”. Fernando Bacelar também galgou postos militares, alcançando a patente
de alferes da Guarda Nacional. Com o envolvimento do Piauí na Balaiada, o herói
valenciano deu lições de civismo e coragem ao se posicionar a favor da ordem
pública. Assim é que, em 1839, ingressou nas fileiras legalistas e foi para o
palco das batalhas. Contudo, seus apreciáveis conhecimentos, raros à época, e,
ainda, sua excelente caligrafia, fizeram com que logo passasse a ocupar o cargo
de escriturário do gabinete em campanha do tenente-coronel José Feliciano de
Morais Cid. Terminadas as lutas contra os revoltosos e concluída a campanha de
Morais Cid no Piauí, o então 1º sargento Bacelar o acompanhou até a Província
da Bahia, regressando algum tempo depois.
“Homem superior é aquele que começa por pôr em prática as suas palavras
e em seguida fala de acordo com suas ações.” De volta ao solo piauiense, bem
referendado por seus serviços militares, Fernando Bacelar foi nomeado, em 1844,
para o cargo de escrevente da Secretaria de Governo. Contudo, em 12 de agosto
do mesmo ano, mediante requerimento do próprio suplicante (imagem acima), recebeu a designação
do Governo Provincial para desempenhar o magistério público na então vila da
Piracuruca. Eis, na íntegra, o texto do documento:
IlmO. e ExmO. Senhor.
Diz Fernando Pereira Bacellar desta ProvA. que constando-lhe
achar-se vaga a Cadeira de 1A. Letras da Villa de Piracuruca, e
considerando-se nas circunstâncias de poder exercer aquele lugar, requer a V.ExA.,
para que se sirva prove-lo em ditto Emprego, por tanto.
P. a V.ExA. se digne deferir ao SuppE. como requer
com cuja graça.
[...]
Fernando Pereira Bacelar[5]
A respeito da destinação do professor Bacelar para servir na plaga
piracuruquense, há uma versão, atribuída ao coronel Luiz de Brito Melo, em que diz:
“[...] Passando ele por aqui na ocasião da Balaiada, foi à igreja de N. S. do
Carmo e a ela fez um voto: Se voltasse, viria aqui residir e daqui jamais
sairia”.[6]
Comprovado, no entanto, tem-se que Bacelar foi empossado na função de professor
público de Piracuruca em 08.07.1845, conforme texto do ofício abaixo:
IlmO. e ExmO. Senhor.
Satisfazendo em parte as Ordens de V. ExA. exarada em 26 de
janeiro [...], tenho de levar as benignas mãos de V. ExA. o mappa
dos Alumnos que frequentarão Aula de pAS Letras nesta Vila, no anno
de 1845; Emquanto a de 1844 deixo de fazer menção, por ter sido eu empossado no
emprego de professor, no dia 8 de julho de 1845; não podendo satisfazer
completamente, como me ordena.
Aula pública em Piracuruca 26 de fevereiro de 1846.
IlmO. e ExmO.
Senr. DOR. Zacarias de Goes Vasconcelos.
Presidente da Província do Piauhy.
Fernando Pereira Bacelar
Professor PblO.[7]
“É preciso que o discípulo da sabedoria tenha o coração grande e
corajoso. O fardo é pesado e a viagem é longa”. Bacelar desempenhou a função de
professor em Piracuruca até 1864, ano em que se aposentou. Em face de sua
jubilação dos serviços educacionais sob a tutela estatal, consta ter permanecido
lecionando, em caráter particular, até 1910. Assim é que ele, por muitos anos,
tornou-se a principal referência instrucional local, dando lições de amor ao
saber e de dedicação à arte de educar. Responsável pelo desenvolvimento escolar
de algumas gerações de piracuruquenses, além de ensinar a ler, escrever e contar,
o Mestre deu instruções de civismo, religião e noções básicas de desenho.
Dentre os muitos vultos conhecidos na história da Piracuruca, em especial
intelectuais e políticos, foram alunos do notável pedagogo: Pedro Melchíades de
Morais Brito, Joaquim de Morais Brito, Anísio de Brito Melo, Luiz de Brito Melo
e Aurélio de Morais Brito.
Um de seus discípulos, o professor e historiador Anísio de Brito Melo (Piracuruca,
26.09.1886; Teresina, 17.04.1946) referiu-se a Fernando Bacelar como “egrégio
mestre”, não deixando dúvidas do apreço e a admiração que dedicava ao nobre
preceptor. Em sua obra, referindo-se à história educacional piracuruquense, ele
assim escreveu:
[...] vulto venerando a quem Piracuruca deve insolvável dívida, qual a
de, com verdadeiro devotamento, inimitável zelo e verdadeira vocação
profissional, cooperar para que muitas gerações não caíssem em a mais completa
ignorância.[8]
O “Mestre Velho”, como carinhosamente era chamado, teve sua competência
de educador comprovada quando, dotado de intuição perfeita para o ensino,
realizou diversos estudos e análises acerca do sistema educacional conhecido
por “Ensino Mútuo”, método largamente adotado na Província do Piauí, externando
suas observações e opiniões.[9]
Esse sistema, regulamentado pela Lei de 15.10.1827,
[...] também denominado monitorial ou lancasteriano, estava sendo
utilizado na Europa, obtendo resultados positivos no que se refere à eficiência
e a custo. Sua adoção, nas escolas brasileiras, mostrava-se profícua naquele momento.
Tal método apresentava-se como uma proposta de organização do ensino que
compreendia todos os elementos constitutivos do fenômeno educativo, quais sejam
os tempos, os espaços, os sujeitos, os conhecimentos e as práticas escolares.[10]
“O homem que é firme, paciente, simples, natural e tranqüilo, está perto
da virtude”. Além do magistério, Fernando Bacelar prestou, em Piracuruca,
diversos outros serviços públicos, tais como: secretário da Confraria de Nossa
Senhora do Carmo; escrivão da Coletoria Geral e Provincial; secretário do
Conselho Municipal; tabelião público interino; juiz de paz e municipal;
contador; curador de órfãos; delegado de Polícia; promotor público;[11] e, ainda, conselheiro municipal.[12]
No campo político-partidário, Fernando Bacelar militou, com plena convicção,
no Partido Conservador. Contudo, imbuído do dever de buscar, sempre, o bem
coletivo, conseguiu manter-se afastado de tricas ou querelas partidárias
locais. Aos mancebos sob sua influência, alguns dos quais futuros líderes de
Piracuruca, deu lições de firmeza de caráter, não apenas através do discurso,
mas, também e principalmente, pelo exemplo, mostrando que idéias e ações
políticas podem, e devem, se colocar em plano elevado, incólumes a outros
interesses, tais como a locupletação e a vaidade.
“As naturezas dos homens são parecidas; são seus hábitos que os afastam
uns dos outros”. Alguns relatos, que sobrevivem até os dias atuais, dão a
conhecer a personalidade de Fernando Bacelar, com conotação respeitosa e
autoritária, merecedora de elevada estima no meio social piracuruquense.
Na esfera da vida privada, casou-se com Dulurinda Maria da Silva, sendo
pais de Jovita Bacelar, que se tornou mais conhecida, na memória popular, como
“a mulher de chambre que só andava de noite”.[13]
Bacelar tornou-se, ainda, tutor de Francisco Gomes Goulart, a quem considerava
um legítimo filho.
Católico convicto, conta-se do seu hábito de frequentar, diariamente, o
templo consagrado à Virgem do Monte Carmo, sempre às 18 horas, para rezar o
“Angelus”. Apenas nos últimos anos de sua vida é que sua rotina de profissão de
fé foi alterada, mantendo-se recolhido em sua residência, localizada na Praça
Irmãos Dantas, saindo somente para participar da missa dominical.
“Quem de manhã compreendeu os ensinamentos da sabedoria, à noite pode
morrer sem mágoa”.[14]
Completados noventa e nove anos, o Mestre Bacelar encerrou a sua lição de vida,
findando-se, também, uma extensa lista de serviços destinados ao bem da
comunidade, seja na educação, na defesa da pátria, no aparelho burocrático ou
na política. No assento em seu Registro de Óbitos consta que
Aos vinte sete dias do mês de maio de mil novecentos e quinze, nesta
cidade, falleceu de congestão cerebral o Alferes Fernando Pereira Bacelar, [...]
viúvo, natural deste Estado.[15]
Na humilde lápide, em mármore, sobre o túmulo do “Mestre Velho” no
cemitério Campo da Saudade, em
Piracuruca, encontra-se talhado o seguinte epitáfio:
Aqui repousam os restos mortais de Fernando Pereira Bacelar [...]
exerceu o magistério público e o particular nesta cidade pelo longo período de
70 anos. A Câmara Municipal de Piracuruca, considerando os relevantes serviços
prestados pelo professor Bacelar à nossa cidade mandou erigir-lhe esta campa,
como singela homenagem.[16]
O legado confucionista, por sua vez, recebeu o justo reconhecimento do
povo chinês, quando
[...] No ano 194 a. C., o primeiro imperador da Casa de Han visitou o
túmulo de Confúcio em Chun-fu. No ano de 72 de nossa era foi adaptado o
mausoléu para nele honrar os setenta e dois principais discípulos do Mestre. Em
267, publicou-se um edito dispondo que se oferecesse a Confúcio um grande
sacrifício quatro vezes por ano. Sua cidade natal erigiu um templo em sua
honra. Um decreto do ano 555 ordenou a construção de um templo consagrado ao
mestre na principal cidade de todos os distritos. Em 665 recebeu o título de “O
Mais Nobre Mestre”, em 739 o de “Rei”, em 1013 o de “O Mais Divino” e em 1048
sua estátua revestida de régios paramentos. Seu retrato está em todas as
escolas desde 637.[17]
Em preito de gratidão e reconhecimento à memória de Fernando Bacelar, o então
administrador Anísio Brito, fazendo valer os poderes de que se achava investido
como diretor da Instrução Publica no Estado do Piauí, mediante celebração de
convênio entre os Governos Estadual e Municipal, autorizou a criação, em
11.06.1933, do “Grupo Escolar Fernando Bacelar”, homenageando, assim, o velho professor de Piracuruca. Em 1947, porém, contrariando o desejo e a
iniciativa do próprio benfeitor, em decisão incauta e descabida, a mencionada
escola teve seu nome modificado, passando a ser denominado “Grupo Escolar
Anísio Brito”.
“Não são as ervas más que afogam a boa
semente, e sim a negligência do lavrador”. Há de se registrar, a bem da
justiça, que, em dado momento, o poder público municipal chegou a destinar
alguma deferência ao homem público Fernando Bacelar, designando uma praça, no
centro da cidade, com seu nome. Contudo, a pretensa homenagem ainda parece insuficiente
e inadequada, em face do grau de importância que deverá representar o seu
legado. Nos dias atuais, o logradouro é utilizado como local de comércio popular,
atividade absolutamente alheia aos predicados e propósitos do venerando
educador.
Os incontáveis
exemplos de descuidos e descasos para com a preservação das representações da
memória, história e cultura de Piracuruca, aliás, não se constituem nas únicas
práticas equivocadas que se verificam no trato da coisa pública. A sociedade secular
piracuruquense necessita se posicionar e se mobilizar em defesa de seus
valores, exigindo de seus gestores planejamentos e ações políticos que
promovam, com eficácia e efetividade, o bem comum, objeto dos adágios de
Confúcio e das lições do memorável Mestre Velho.
[1]BRITO, Augusto. As lições do mestre Fernando Bacelar e o pensamento de
Confúcio. Jornal Acesso Real. Coluna Calidoscópio
Cultural. Piracuruca, 01 dez. 2008; p. 04.
[2]CONFÚCIO; A doutrina
da Mediania. In: DOEBLIN, Alfred (apresentação). O Pensamento Vivo de Confúcio.
São Paulo: Martins Editora, 1967; p. 14.
[3]CONFÚCIO; A doutrina
da Mediania. In: DOEBLIN, Alfred (apresentação). O Pensamento Vivo de Confúcio.
São Paulo: Martins Editora, 1967; p. 52.
[4]BRITO, Anisio. O
Piauhy no Centenário de Sua Independência. Teresina: Papelaria Piauhyense,
1923; p. 180.
[5]PIAUÍ. Arquivo Público
do Piauí. Piracuruca. Caixa nº 152. Requerimento de Fernando Pereira Bacelar ao
presidente da Província do Piauí, com deferimento no próprio documento em data
de 12.08.1844.
[6]BRITTO, Maria do
Carmo Fortes de. Remexendo o Baú. Piripiri: Gráfica Ideal, 2009.
[7]PIAUÍ. Arquivo Público
do Piauí. Piracuruca. Caixa nº 152. Ofício de Fernando Pereira Bacelar ao
presidente da Província do Piauí, Zacarias de Goes Vasconcelos, em 26.02.1846.
[8]BRITO, Anísio. O
Piauhy no Centenário de Sua Independência. Teresina: Papelaria Piauhyense,
1923; p. 179.
[9]BRITO, Anísio. O Piauhy
no Centenário de Sua Independência. Teresina: Papelaria Piauhyense, 1923; p.
181.
[10]INÁCIO, Marcilaine
Soares; FARIAS FILHO, Luciano Mendes de. O método mútuo e a circulação de
impressos pedagógicos na Província mineira no século XIX. Belo Horizonte: UFMG.
[11]BRITO, Anisio. O
Piauhy no Centenário de Sua Independência. Teresina: Papelaria Piauhyense,
1923; p. 180-181.
[12]PIAUÍ. Arquivo
Público do Estado do Piauí. Piracuruca. Ofício do Conselho Municipal, datado de
10.04.1861.
PIAUÍ. Arquivo Público do Estado do Piauí.
Piracuruca. Ofício do Conselho Municipal, datado de 12.10.1889.
[13]BITENCOURT, Jureni
Machado. Apontamentos Históricos da Piracuruca. Teresina: COMEPI, 1989; p.
108-109.
[14]CONFÚCIO; A doutrina
da Mediania. In: O Pensamento Vivo de Confúcio. São Paulo: Martins Editora,
1967; p. 79.
[15]PARÓQUIA DE
PIRACURUCA. Livro de Registro de Óbitos; Fls. 117-V.
[16]PARÓQUIA DE
PIRACURUCA. Cemitério Campo da Saudade. Túmulo de Fernando Pereira Bacelar.
[17]DOEBLIN, Alfred.
Apresentação de Confúcio. In: O Pensamento Vivo de Confúcio. São Paulo: Martins
Editora, 1967; p. 30.
(BRITO, Augusto. Recortes da Cidade Lendária: Cultura, Memória e História de Piracuruca).
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