terça-feira, 5 de janeiro de 2016


Cultura, Memória e História em Pesquisa...




AS LIÇÕES DO MESTRE FERNANDO BACELAR E O PENSAMENTO DE CONFÚCIO[1]


  Augusto Brito


O saber é saber que nada sabe; esta é a definição do verdadeiro conhecimento”. Essa sentença é atribuída a um certo homem Kung, de Lu, que nasceu na aldeia de Tsen, província de Shantung, em plena China feudal, no ano de 550 ou 551 a. C.[2] Ensinava, ele, aos seus discípulos, que cada elemento da sociedade deve cumprir com seu dever de forma correta, condicionando seus hábitos a serviço da temperança do espírito e da eliminação dos excessos.  No mundo ocidental, seu nome foi latinizado para Confúcio, mas seus ensinamentos, de excepcional sabedoria, ainda permanecem praticamente ignorados.

A doutrina de Confúcio tinha, como objetivo, a busca pela formação de uma sociedade capaz, culturalmente instruída e disposta ao bem-estar comum. Seus seguidores cuidaram em sintetizar os ensinamentos do mestre em um conjunto de obras, base do hoje chamado “confucionismo histórico”, dividido em dois blocos: Os quatro livros clássicos (A grande ciência; A doutrina da mediania; Analectas; e Mêncio); e Os cinco livros sagrados (Shu-king ou Livro dos Documentos Históricos; Shih-king ou Livro de Antigos Poemas; Yi-king ou Livro das Mutações; Li-ki ou Livro de Antigos Ritos e Cerimônias; e Ch’un Ch’iu ou Primavera e Outono). Em seu “Elogio da Doutrina Mediana”, Confúcio ensina que “Aquilo que o céu outorgou chama-se Natureza; a harmonia com essa natureza chama-se Caminho do Dever; a ordenação desse caminho chama-se Instrução”.[3]  

O Mestre disse: não é grave se os homens não te conhecem; grave é se tu não os conheces”. Na sociedade piracuruquense da primeira metade do século XIX, surgiu uma personalidade que parecia conhecer e assimilar, com curiosa perfeição, o ideário do milenar filósofo chinês. Seus valores, aplicados à coisa pública, ao legalismo e à pedagogia, assumiram fundamental importância no desenvolvimento da Vila, em especial no processo educacional da juventude local, introduzindo-a nos segredos maravilhosos das letras, dos números e do pensamento: o professor Fernando Bacelar.

O cidadão Fernando Pereira Bacelar nasceu, provavelmente, em 1815 ou 1816, na então freguesia de Valença, torrão de grande importância histórica por ter abrigado um dos primeiros arraiais de bandeirantes na Capitania do Piauí.

Escolhe um trabalho que gostes, e não terás que trabalhar nem um dia em tua vida”. A vocação de Fernando Bacelar para as atividades relacionadas ao serviço publico se evidenciou desde a sua juventude. Ainda em sua cidade natal, registra-se ter ocupado diversos cargos, tais como: professor público, agente dos Correios, tabelião e juiz de paz.[4]

Pode se tirar de um general seu exército, mas não de um homem sua vontade”. Fernando Bacelar também galgou postos militares, alcançando a patente de alferes da Guarda Nacional. Com o envolvimento do Piauí na Balaiada, o herói valenciano deu lições de civismo e coragem ao se posicionar a favor da ordem pública. Assim é que, em 1839, ingressou nas fileiras legalistas e foi para o palco das batalhas. Contudo, seus apreciáveis conhecimentos, raros à época, e, ainda, sua excelente caligrafia, fizeram com que logo passasse a ocupar o cargo de escriturário do gabinete em campanha do tenente-coronel José Feliciano de Morais Cid. Terminadas as lutas contra os revoltosos e concluída a campanha de Morais Cid no Piauí, o então 1º sargento Bacelar o acompanhou até a Província da Bahia, regressando algum tempo depois.

Homem superior é aquele que começa por pôr em prática as suas palavras e em seguida fala de acordo com suas ações.” De volta ao solo piauiense, bem referendado por seus serviços militares, Fernando Bacelar foi nomeado, em 1844, para o cargo de escrevente da Secretaria de Governo. Contudo, em 12 de agosto do mesmo ano, mediante requerimento do próprio suplicante (imagem acima), recebeu a designação do Governo Provincial para desempenhar o magistério público na então vila da Piracuruca. Eis, na íntegra, o texto do documento:



IlmO. e ExmO. Senhor.

Diz Fernando Pereira Bacellar desta ProvA. que constando-lhe achar-se vaga a Cadeira de 1A. Letras da Villa de Piracuruca, e considerando-se nas circunstâncias de poder exercer aquele lugar, requer a V.ExA., para que se sirva prove-lo em ditto Emprego, por tanto.

P. a V.ExA. se digne deferir ao SuppE. como requer com cuja graça.

[...]

Fernando Pereira Bacelar[5]



A respeito da destinação do professor Bacelar para servir na plaga piracuruquense, há uma versão, atribuída ao coronel Luiz de Brito Melo, em que diz: “[...] Passando ele por aqui na ocasião da Balaiada, foi à igreja de N. S. do Carmo e a ela fez um voto: Se voltasse, viria aqui residir e daqui jamais sairia”.[6] Comprovado, no entanto, tem-se que Bacelar foi empossado na função de professor público de Piracuruca em 08.07.1845, conforme texto do ofício abaixo:



IlmO. e ExmO. Senhor.

Satisfazendo em parte as Ordens de V. ExA. exarada em 26 de janeiro [...], tenho de levar as benignas mãos de V. ExA. o mappa dos Alumnos que frequentarão Aula de pAS Letras nesta Vila, no anno de 1845; Emquanto a de 1844 deixo de fazer menção, por ter sido eu empossado no emprego de professor, no dia 8 de julho de 1845; não podendo satisfazer completamente, como me ordena.

Aula pública em Piracuruca 26 de fevereiro de 1846.

IlmO.  e ExmO. Senr. DOR. Zacarias de Goes Vasconcelos.

Presidente da Província do Piauhy.

Fernando Pereira Bacelar

Professor PblO.[7]



É preciso que o discípulo da sabedoria tenha o coração grande e corajoso. O fardo é pesado e a viagem é longa”. Bacelar desempenhou a função de professor em Piracuruca até 1864, ano em que se aposentou. Em face de sua jubilação dos serviços educacionais sob a tutela estatal, consta ter permanecido lecionando, em caráter particular, até 1910. Assim é que ele, por muitos anos, tornou-se a principal referência instrucional local, dando lições de amor ao saber e de dedicação à arte de educar. Responsável pelo desenvolvimento escolar de algumas gerações de piracuruquenses, além de ensinar a ler, escrever e contar, o Mestre deu instruções de civismo, religião e noções básicas de desenho. Dentre os muitos vultos conhecidos na história da Piracuruca, em especial intelectuais e políticos, foram alunos do notável pedagogo: Pedro Melchíades de Morais Brito, Joaquim de Morais Brito, Anísio de Brito Melo, Luiz de Brito Melo e Aurélio de Morais Brito.

Um de seus discípulos, o professor e historiador Anísio de Brito Melo (Piracuruca, 26.09.1886; Teresina, 17.04.1946) referiu-se a Fernando Bacelar como “egrégio mestre”, não deixando dúvidas do apreço e a admiração que dedicava ao nobre preceptor. Em sua obra, referindo-se à história educacional piracuruquense, ele assim escreveu:



[...] vulto venerando a quem Piracuruca deve insolvável dívida, qual a de, com verdadeiro devotamento, inimitável zelo e verdadeira vocação profissional, cooperar para que muitas gerações não caíssem em a mais completa ignorância.[8]



O “Mestre Velho”, como carinhosamente era chamado, teve sua competência de educador comprovada quando, dotado de intuição perfeita para o ensino, realizou diversos estudos e análises acerca do sistema educacional conhecido por “Ensino Mútuo”, método largamente adotado na Província do Piauí, externando suas observações e opiniões.[9] Esse sistema, regulamentado pela Lei de 15.10.1827,



[...] também denominado monitorial ou lancasteriano, estava sendo utilizado na Europa, obtendo resultados positivos no que se refere à eficiência e a custo. Sua adoção, nas escolas brasileiras, mostrava-se profícua naquele momento. Tal método apresentava-se como uma proposta de organização do ensino que compreendia todos os elementos constitutivos do fenômeno educativo, quais sejam os tempos, os espaços, os sujeitos, os conhecimentos e as práticas escolares.[10]



O homem que é firme, paciente, simples, natural e tranqüilo, está perto da virtude”. Além do magistério, Fernando Bacelar prestou, em Piracuruca, diversos outros serviços públicos, tais como: secretário da Confraria de Nossa Senhora do Carmo; escrivão da Coletoria Geral e Provincial; secretário do Conselho Municipal; tabelião público interino; juiz de paz e municipal; contador; curador de órfãos; delegado de Polícia; promotor público;[11]  e, ainda, conselheiro municipal.[12] 

No campo político-partidário, Fernando Bacelar militou, com plena convicção, no Partido Conservador. Contudo, imbuído do dever de buscar, sempre, o bem coletivo, conseguiu manter-se afastado de tricas ou querelas partidárias locais. Aos mancebos sob sua influência, alguns dos quais futuros líderes de Piracuruca, deu lições de firmeza de caráter, não apenas através do discurso, mas, também e principalmente, pelo exemplo, mostrando que idéias e ações políticas podem, e devem, se colocar em plano elevado, incólumes a outros interesses, tais como a locupletação e a vaidade.

As naturezas dos homens são parecidas; são seus hábitos que os afastam uns dos outros”. Alguns relatos, que sobrevivem até os dias atuais, dão a conhecer a personalidade de Fernando Bacelar, com conotação respeitosa e autoritária, merecedora de elevada estima no meio social piracuruquense.

Na esfera da vida privada, casou-se com Dulurinda Maria da Silva, sendo pais de Jovita Bacelar, que se tornou mais conhecida, na memória popular, como “a mulher de chambre que só andava de noite”.[13] Bacelar tornou-se, ainda, tutor de Francisco Gomes Goulart, a quem considerava um legítimo filho.

Católico convicto, conta-se do seu hábito de frequentar, diariamente, o templo consagrado à Virgem do Monte Carmo, sempre às 18 horas, para rezar o “Angelus”. Apenas nos últimos anos de sua vida é que sua rotina de profissão de fé foi alterada, mantendo-se recolhido em sua residência, localizada na Praça Irmãos Dantas, saindo somente para participar da missa dominical.

Quem de manhã compreendeu os ensinamentos da sabedoria, à noite pode morrer sem mágoa”.[14] Completados noventa e nove anos, o Mestre Bacelar encerrou a sua lição de vida, findando-se, também, uma extensa lista de serviços destinados ao bem da comunidade, seja na educação, na defesa da pátria, no aparelho burocrático ou na política. No assento em seu Registro de Óbitos consta que



Aos vinte sete dias do mês de maio de mil novecentos e quinze, nesta cidade, falleceu de congestão cerebral o Alferes Fernando Pereira Bacelar, [...] viúvo, natural deste Estado.[15]



Na humilde lápide, em mármore, sobre o túmulo do “Mestre Velho” no cemitério Campo da Saudade, em Piracuruca, encontra-se talhado o seguinte epitáfio:



Aqui repousam os restos mortais de Fernando Pereira Bacelar [...] exerceu o magistério público e o particular nesta cidade pelo longo período de 70 anos. A Câmara Municipal de Piracuruca, considerando os relevantes serviços prestados pelo professor Bacelar à nossa cidade mandou erigir-lhe esta campa, como singela homenagem.[16]

   

O legado confucionista, por sua vez, recebeu o justo reconhecimento do povo chinês, quando



[...] No ano 194 a. C., o primeiro imperador da Casa de Han visitou o túmulo de Confúcio em Chun-fu. No ano de 72 de nossa era foi adaptado o mausoléu para nele honrar os setenta e dois principais discípulos do Mestre. Em 267, publicou-se um edito dispondo que se oferecesse a Confúcio um grande sacrifício quatro vezes por ano. Sua cidade natal erigiu um templo em sua honra. Um decreto do ano 555 ordenou a construção de um templo consagrado ao mestre na principal cidade de todos os distritos. Em 665 recebeu o título de “O Mais Nobre Mestre”, em 739 o de “Rei”, em 1013 o de “O Mais Divino” e em 1048 sua estátua revestida de régios paramentos. Seu retrato está em todas as escolas desde 637.[17] 



Em preito de gratidão e reconhecimento à memória de Fernando Bacelar, o então administrador Anísio Brito, fazendo valer os poderes de que se achava investido como diretor da Instrução Publica no Estado do Piauí, mediante celebração de convênio entre os Governos Estadual e Municipal, autorizou a criação, em 11.06.1933, do “Grupo Escolar Fernando Bacelar”, homenageando, assim, o velho professor de Piracuruca. Em 1947, porém, contrariando o desejo e a iniciativa do próprio benfeitor, em decisão incauta e descabida, a mencionada escola teve seu nome modificado, passando a ser denominado “Grupo Escolar Anísio Brito”.

Não são as ervas más que afogam a boa semente, e sim a negligência do lavrador”. Há de se registrar, a bem da justiça, que, em dado momento, o poder público municipal chegou a destinar alguma deferência ao homem público Fernando Bacelar, designando uma praça, no centro da cidade, com seu nome. Contudo, a pretensa homenagem ainda parece insuficiente e inadequada, em face do grau de importância que deverá representar o seu legado. Nos dias atuais, o logradouro é utilizado como local de comércio popular, atividade absolutamente alheia aos predicados e propósitos do venerando educador.

               Os incontáveis exemplos de descuidos e descasos para com a preservação das representações da memória, história e cultura de Piracuruca, aliás, não se constituem nas únicas práticas equivocadas que se verificam no trato da coisa pública. A sociedade secular piracuruquense necessita se posicionar e se mobilizar em defesa de seus valores, exigindo de seus gestores planejamentos e ações políticos que promovam, com eficácia e efetividade, o bem comum, objeto dos adágios de Confúcio e das lições do memorável Mestre Velho.




[1]BRITO, Augusto. As lições do mestre Fernando Bacelar e o pensamento de Confúcio. Jornal Acesso Real. Coluna Calidoscópio Cultural. Piracuruca, 01 dez. 2008; p. 04.
[2]CONFÚCIO; A doutrina da Mediania. In: DOEBLIN, Alfred (apresentação). O Pensamento Vivo de Confúcio. São Paulo: Martins Editora, 1967; p. 14.  
[3]CONFÚCIO; A doutrina da Mediania. In: DOEBLIN, Alfred (apresentação). O Pensamento Vivo de Confúcio. São Paulo: Martins Editora, 1967; p. 52.  
[4]BRITO, Anisio. O Piauhy no Centenário de Sua Independência. Teresina: Papelaria Piauhyense, 1923; p. 180. 
[5]PIAUÍ. Arquivo Público do Piauí. Piracuruca. Caixa nº 152. Requerimento de Fernando Pereira Bacelar ao presidente da Província do Piauí, com deferimento no próprio documento em data de 12.08.1844.
[6]BRITTO, Maria do Carmo Fortes de. Remexendo o Baú. Piripiri: Gráfica Ideal, 2009.
[7]PIAUÍ. Arquivo Público do Piauí. Piracuruca. Caixa nº 152. Ofício de Fernando Pereira Bacelar ao presidente da Província do Piauí, Zacarias de Goes Vasconcelos, em 26.02.1846.
[8]BRITO, Anísio. O Piauhy no Centenário de Sua Independência. Teresina: Papelaria Piauhyense, 1923; p. 179.
[9]BRITO, Anísio. O Piauhy no Centenário de Sua Independência. Teresina: Papelaria Piauhyense, 1923; p. 181.
[10]INÁCIO, Marcilaine Soares; FARIAS FILHO, Luciano Mendes de. O método mútuo e a circulação de impressos pedagógicos na Província mineira no século XIX. Belo Horizonte: UFMG.
[11]BRITO, Anisio. O Piauhy no Centenário de Sua Independência. Teresina: Papelaria Piauhyense, 1923; p. 180-181.
[12]PIAUÍ. Arquivo Público do Estado do Piauí. Piracuruca. Ofício do Conselho Municipal, datado de 10.04.1861.
PIAUÍ.  Arquivo Público do Estado do Piauí. Piracuruca. Ofício do Conselho Municipal, datado de 12.10.1889. 
[13]BITENCOURT, Jureni Machado. Apontamentos Históricos da Piracuruca. Teresina: COMEPI, 1989; p. 108-109.
[14]CONFÚCIO; A doutrina da Mediania. In: O Pensamento Vivo de Confúcio. São Paulo: Martins Editora, 1967; p. 79.
[15]PARÓQUIA DE PIRACURUCA. Livro de Registro de Óbitos; Fls. 117-V.
[16]PARÓQUIA DE PIRACURUCA. Cemitério Campo da Saudade. Túmulo de Fernando Pereira Bacelar.
[17]DOEBLIN, Alfred. Apresentação de Confúcio. In: O Pensamento Vivo de Confúcio. São Paulo: Martins Editora, 1967; p. 30.




(BRITO, Augusto. Recortes da Cidade Lendária: Cultura, Memória e História de Piracuruca).

 


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