sábado, 6 de fevereiro de 2016


Cultura, Memória e História em Pesquisa...



 LUÍZA, UMA POETISA  


Augusto Brito





Ela dormia no divã de prata,
Como rainha nos degraus do trono!
Nem uma nuvem rendilhada e fina;
Nem uma estrela lhe guardava o sono.[1]

É possível, na atualidade, que uma parcela significativa da população piracuruquense que transita, regular ou eventualmente, pelo logradouro que recebe o nome “Rua Luiza Amélia”, não identifique, com facilidade, que o soneto “Impossível” - belíssima alusão à lua, de cuja construção é parte a estrofe acima - compõe a singular obra da ilustre poetisa local.
Luíza Amélia de Queiróz nasce em Piracuruca, a 26 de dezembro de 1838, do leito do casal Vitalina Luíza de Queiroz e Manuel Eduardo Queiróz. Não são conhecidos registros documentais que atestem o tempo em que a futura poetisa permanece em sua terra natal. Há de se supor, no entanto, que passe a residir em Parnaíba ainda muito pequenina, pois não possui lembranças de sua Piracuruca.

A minha terra querida
Que amo sem conhecer,
Vou um canto de ternura
Comovida lh’of’recer: [...][2]

Alguns biógrafos que fazem chegar até os nossos dias as exíguas e fragmentadas informações acerca de Luíza Amélia, apontam que a poetisa, desde seus mais tenros anos, já demonstra grande interesse pela leitura, adquirindo, rapidamente, uma cultura exemplar, fato considerado incomum para os padrões de seu tempo. Por aqueles idos, a mulher enfrenta grandes preconceitos, principalmente quando busca ocupar lugares sociais[3] atribuídos, prioritariamente, ao sujeito do gênero masculino. Em seus primeiros experimentos poéticos, a moçoila atrevida chega a descrever um retrato de si própria, escrevendo:

D’estrutura elegante, porte airoso
E a tez levemente amorenada.
A boca não pequena e narcada,
O olhar meigo, triste e langoroso.

O cabelo corrido mas lustroso,
Moldando-lhe a face descorada;
O nariz regular, fronte elevada
Prometendo um gênio grandioso.[4]

O gênio grandioso pressagiado se revela através de uma abnegada amante da poesia. Luiza Amélia busca amealhar o máximo de conhecimentos acerca do fazer literário, o que lhe é favorecido, em grande conta, por sua situação econômico-financeira privilegiada. Consegue, assim, ler os principais autores românticos de sua época, com especial enlevo para Maria Amália Vaz de Carvalho, Gonçalves Dias, Álvares de Azevedo e Casemiro de Abreu, dentre diversos outros.
Como marca indelével de sua personalidade, Luíza Amélia esbanja inquietude e ousadia em sua escrita. Tomando a palavra de um lugar social de fala que é utilizado, eminentemente, pelos homens, rompe barreiras e contraria opiniões, a começar pelo seio da própria família. Seu espírito literário indômito prossegue esgrimindo contra seu tempo, na busca por avanços para as mulheres em meio à sociedade patriarcal e machista piauiense da segunda metade do século XIX, notadamente no que diz respeito à garantia de liberdade de expressão. Em “Borboleta”, a poetisa, já antecipando a almejada liberdade, devaneia:

Incansável borboleta
Já não tem de que sentir
As asas te restituo
És livre, podes partir![5]

No que concerne à esfera conjugal, alinhada aos preceitos da contextura social de que faz parte, a poetisa, no ano de 1859, contrai núpcias com Pedro José Nunes, bem-sucedido comerciante orindo das plagas médio-parnaibanas, passando a assinar Luíza Amélia de Queiroz Nunes. Referindo-se à união da poetisa com o empresário, que, em sociedade com o irmão, Gil José Nunes, filho do casal Luíza Barbosa Ribeiro e Gonçalo José Nunes,[6] estabelece, em Parnaíba, a firma Nunes & Irmão Ltda, Miranda assim escreve:

[...] Pedro José Nunes, então próspero comerciante, convola núpcias com uma bela jovem da vila de Piracuruca, que conhecera em Parnaíba, provavelmente estudando em alguma escola, Luíza Amélia de Queiroz, que mais tarde se revelaria uma das principais poetisas do Piauí.[7]

O primeiro trabalho de Luíza Amélia que vai a lume é “Flores Incultas”, em 1875, levado a prelo nas oficinas da Tipografia Paiz Imp. M. F.V. Pires, do Maranhão. Seu próprio título “[...] denunciava o restrito acesso das mulheres à instrução, utilizando uma das imagens construídas sobre as mulheres no período, vistas como flores, belas e incultas”.[8] A autora, demonstrando profundo incômodo ante a condição de submissão sob o qual vive a mulher em sua época, acusa

A mulher que toma a pena
Para em lira a transformar,
É, para os falsos sectários,
Um crime que os faz pasmar!
Transgride as leis da virtude;
A mulher deve ser rude,
Ignara por condição,
Não deve aspirar à glória!
Nem um dia na história
Fulgurar com distinção![9]

Ainda no volume “Flores inclutas”, poderá ser encontrado um de seus mais belos sonetos, “O Homem Não Ama”, do qual faz parte o fragmento abaixo:

Cruéis, como Nero, são todos os homens,
Ateiam as chamas de ardente paixão,
Depois... observam, sorrindo, os estragos...
E dizem, cobardes! Que têm coração.

Alguns estudiosos em literatura romântica identificam,nos poemas coligidos em "Flores incultas", uma acentuada influência de Casimiro de Abreu, uma dos autores favoritos de Luíza Amélia. A ingenuidade e bucolismo, por se voltar a temas relacionados à família, à religiosidade e às questões cotidianas de seu meio.
Tendo ficado viúva de Pedro José Nunes, a poetisa contrai segundas núpcias, em 23 de dezembro de 1888, com Benedito Rodrigues Moreira Brandão, passando a assinar, a partir de então, Luíza Amélia de Queiróz Brandão. Sob o segundo esposo da poetisa, consta ter sido ele empregado de confiança do estabelecimento comercial que a vate herdara do primeiro casamento.[10] Com o tempo, Brandão chega a se tornar

[...] rico e influente comerciante parnaibano, fundador e presidente de 1901 a 1903 da Sociedade Protetora Parnaibana, além de Vice-Intendente Municipal no período de 1887 a 1889, na administração do Intendente Coronel Joaquim Antônio dos Santos (mais conhecido como Coronel Quincas Santos).[11]

Georgina ou os Efeitos do Amor” é a segunda obra de Luíza Amélia, também levada  prelo no Maranhão, em 1893; Com estrutura composta de cinco cantos, o pequeno livro é prefaciado por Dias Carneiro, em que escreve:

[...] ao lado, porém da forma dourada e sutil, que constitui, por assim dizer, a tela transparente do enredo: através da imaginação brilhante, com que a autora enflora os detalhes do seu drama, o que mais atraiu minha atenção foi o assunto do poema e o lirismo nacional que o perfuma.[12]

No canto “Georgina II”, a respeito do amor, pode ser lida a seguinte estrofe:

Amor, mistério, divinal encanto;
Miragem, sonho, aspiração, querer!
Vulcão ardente a derramar incêndio;
Esfinge enorme de falaz poder![13]

Parte significativa da crítica literária aduz que, em “Georgina...”, ao contrário de "Flores Incultas", a erudita piracuruquense “esbanja uma sublime poética e o desvínculo com sua influência casemira”.[14]
Além de se tornar ícone de substancial importância para a literatura romântica piauiense, há registros de que Luíza Amélia também realiza incursões como jornalista, colaborando em jornais e revistas da sua época, a exemplo do semanário O Telefone, que circulou em Teresina entre 1883 e 1889, e o Novo Almanaque de Lembranças Luso-brasileiro.
Sublimada pela inspiração e demonstrando ter alcançado uma elevada espiritualidade, já nos últimos momentos de uma inglória luta que trava contra um câncer de útero, a Princesa da Poesia Romântica do Piauí ainda consegue reunir forças para escrever

Eu vejo... eu sigo, de Maria o vulto
Às plagas santas que Jesus habita;
Nele e na Virgem encontrando indulto
À pátria volto de onde andei proscrita.[15]

Luíza Amélia expira no plano terreno, em 12 de novembro de 1898, em Parnaíba, cidade que lhe dá acolhida durante a maior parte de sua vida. Seu corpo é inumado no Cemitério da Igualdade, onde jaz, ainda hoje, sob a majestosa campa, em mármore, d’onde irrompe frondosa gameleira. A inusitada presença da árvore em seu túmulo suscita recordar os versos do soneto “Teto de inspiração[16], no qual a poetisa exprime seu desejo de ser sepultada à sombra do belo exemplar da família das moráceas. O curioso fato é também citado em seus dados biográficos:

[...] a poetisa desejava ser sepultada à sobra de uma gameleira. O seu desejo não pôde ser atendido, mas a natureza, por si só, se encarregou de premiá-la com a providencial sombra fazendo nascer de dentro de seu túmulo uma frondosa árvore daquela espécie.[17]

Os poemas de Luíza Amélia, após a sua morte, passam a integrar diversas coletâneas. Dentre as mais recentes, na Antologia de Sonetos Piauienses, com “A Deus”;[18] em Mulheres que amo[19] e em Escritoras brasileiras do século XIX.[20]
O justo reconhecimento ao conjunto da obra de Luíza Amélia chega às agremiações literárias e culturais. Na Academia Piauiense de Letras (APL), recebe, em 1921,[21] como homenagem, o patrontato da cadeia n. 28, inaugurada por Elias de Oliveira e Silva e ocupada, na sequência, por José Vidal de Freitas e Manfredi Mendes de Cerqueira, se conterrâneo.[22] Na Academia Parnaibana de Letras (APAL), é patrona da cadeira n. 24, tendo, como primeiro ocupante, Carlos Oliveira Neto, seguido por Edimée Rego Pires de Castro.[23] Na composição da Academia de Letras da Região de Sete Cidades (ALRESC), dá nome à cadeira n. 02, ocupada por Luiz Gonzaga Brandão de Carvalho.
Os estudos desenvolvidos, na atualidade, acerca da vida e da obra de Luíza Amélia de Queiroz, especialmente por parte da comunidade acadêmica que pesquisa literatura e relações de gênero, corroboram que a poetisa “[...] afastou-se do modelo de mulher da sua época, utilizou o domínio da leitura e da escrita para fazer poesia e, acima de tudo, publicá-las”.[24] Apesar de não se constituir no mais perfeito modelo feminista, paralelamente à erudição literária, recurso como qual enfrenta e rompe barreiras socioculturais, há uma mulher normalmente inserida no cotidiano domiciliar e provinciano: devotada esposa, dedicada tia na educação dos sobrinhos, dando vazão à prole que não consegue lograr. Refletindo acerca da vida da poetisa, Clodoaldo Freitas, um de seus principais biógrafos, indaga:

[...] o que hei de dizer de uma senhora cuja vida serena deslizou no suave aconchego do lar [...] apenas empanada pela tênue nuvem de uma saudade velada pelo cendal da dor pela morte ou separação de entes queridos[25]

O memorial da barda piracuruquense, [...] primeira mulher, no Piauí, que se dedicou às letras, tornando-se notável pela inteligência arguta, aliada a uma vasta cultura literária”,[26] certamente não prosseguirá, em seu rincão, apenas emprestando nome a artéria pública, lugar de memória[27] e representação[28] com que quase nada se identifica uma parte de seus conterrâneos, tampouco compreendem as razões de tal homenagem. Para muito além disso, Luíza Amélia deverá ser lembrada pelo ousado sequestro da palavra, com a publicação de seus ensaios poéticos. A borboleta de sua metáfora, antes que consiga expandir suas asas e alçar o libertário voo rumo ao infinito, necessita romper os limites tramados pelo casulo, que a protege, mas também a oprime.
Às entidades culturais e educacionais, sejam de natureza pública, privada ou em colaboração, cumpre, por dever de ofício, primazia de desenvolver políticas voltadas à pesquisa, ao estudo e à divulgação dos bens culturais da sociedade. Dedicada a honrar esse meritoso papel, a Academia Piauiense de Letras (APL), em diversas oportunidades – e, agora, já em comemoração ao centenário de sua fundação -, digna-se em promover a reedição de diversas obras de autores piauienses, de reconhecida relevância, exemplo de "Flores Incultas" de Luíza Amélia de Queiroz.
    



[1]NUNES, Luiza Amélia de Queirós. Flores Incultas.  
[2]NUNES, Luiza Amélia de Queiroz. Flores Incultas. [São Luis]: Tip. Paiz. Imp. M. F. V. Pires, 1875; p. 47.  
[3]Para Michel de Certeau, “Toda pesquisa historiográfica se articula com um lugar de produção sócio-econômico, político e cultural. Implica um meio de elaboração que circunscrito por determinações próprias: uma profissão liberal, um posto de observação ou de ensino, uma categoria de letrados”. CERTEAU, Michel de. A escrita da história. 2. ed. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 1982. p. 66.   
[4]NUNES, 1875; p. 85.
[5] NUNES, 1875, p. 223.
[6] MIRANDA, Reginaldo. Apontamentos genealógicos da Família Nunes. Teresina: Academia Piauiense de Letras, 2013. p. 67.
[7] MIRANDA, Reginaldo. Nunes, uma família da História. Disponível em: <<www.academiapiauiensedeletras.org.br>>. Acesso em: 04.09.2013
[8]ROCHA, Olívia Candeia Lima. Cartografias literárias em devir: mulheres, escrita e subversão. Caderno Espaço Feminino (UFU), v. 1, p. 223-244. 2006.
[9] NUNES, 1875, p; 71-75.
[10] MIRANDA, 2013.
[11] FORTES FILHO, José. A poesia romântica de Luíza Amélia. Disponível em <<www.portalentretextos.com.br>>. Acesso em: 04.09.2013.
[12] GONÇALVES, Wilson Carvalho. Antologia da Academia Piauiense de Letras. Teresina: [s.n.], 2000. p. 363.
[13] BRANDÃO, Luíza Amélia de Queiroz. Georgina ou os efeitos do amor. [São Luís]: Tipografia do Pacotilha, 1893.
[14] FORTES FILHO, 2013.
[15] BRANDÃO, 1893.
[16] NUNES, 1875.
[17]ADRIÃO NETO. Dicionário Biográfico Escritores Piauienses de Todos os Tempos. 2ª ed. Teresina: Halley S.A.; p. 54.
[18] AIRES, Félix. Antologia de sonetos piauienses. Brasília: Senado Federal, 1972. p. 23.
[19] MULHERES que amo. Disponível em <<www.zezphina.utopia.com.br>> Acesso em: 04.09.2013.
[20] MUZART, Zehidé Lupinacci (Org.). Escritoras brasileiras do Século XIX. Santa Cruz do Sul: Edunisc, 1999.
[21] FORTES FILHO, José Amélia de Freitas Beviláqua, uma mulher de vanguarda. Disponível em <<www.meionorte.com>>. Acesso em: 04.09.2013.
[22] REVISTA da Academia Piauiense de Letras, Teresina, ano LXXVII, n. 52, 1994. p. 239.
[23] ADRIÃO NETO, 1995, p. 343.
[24] COSTA FILHO, Alcebíades. Mulheres e leitura no Piauí: institutos de representação intelectual: Academia Piauiense de Letras. In: I Colóquio Internacional Literatura e Gênero: Relações de Poder, Gênero e Representações Literárias, 2012. Teresina: Editora UESPI, 2012. p. 05.
[25] FREITAS, Clodoaldo. Vultos piauienses: apontamentos biográficos. 2. ed. Teresina: Fundação Cultural Monsenhor Chaves, 1998. p. 105.
[26] ALMANAQUE da Parnaíba. [Parnaíba]: [s.n.], 1939.
[27]Para Pierre Nora “Os lugares de memória nascem e vivem do sentimento que não há memória espontânea, [...] mas se o que eles defendem não estivesse ameaçado, não se teria, tampouco, a necessidade de construí-los. Se vivêssemos verdadeiramente as lembranças que eles envolvem, eles seriam inúteis”. NORA, Pierre. Entre a memória e a história: a problemática dos lugares. História, São Paulo, n. 10, dez. 1993;  p. 13.
[28]Definição constante do Dicionário Furitière, Roger Chartier menciona representação “como dando a ver uma coisa ausente, o que supõe uma distinção radical entre aquilo que representa e aquilo que é representado”. In: CHARTIER, Roger. A história cultural: entre práticas e representações. Lisboa: Difel, 2002; p. 20.
 




(BRITO, Augusto. Luiza, uma poetisa. In: Flores Incultas. 2ª ed. Teresina: Academia Piauiense de Letras (APL), 2015 p. 241-249).  

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