Cultura, Memória e História em Pesquisa...
LUÍZA, UMA POETISA
Augusto Brito
Ela dormia no divã de
prata,
Como rainha nos degraus
do trono!
Nem uma nuvem
rendilhada e fina;
Nem uma estrela lhe
guardava o sono.[1]
É possível, na atualidade, que uma parcela significativa da população piracuruquense
que transita, regular ou eventualmente, pelo logradouro que recebe o nome “Rua Luiza Amélia”,
não identifique, com facilidade, que o soneto “Impossível” - belíssima alusão à lua, de cuja construção é parte
a estrofe acima - compõe a singular obra da ilustre poetisa local.
Luíza Amélia de Queiróz nasce em Piracuruca, a 26 de dezembro de 1838,
do leito do casal Vitalina Luíza de Queiroz e Manuel
Eduardo Queiróz. Não são conhecidos registros documentais que atestem o tempo
em que a futura poetisa permanece em sua terra natal. Há de se supor, no
entanto, que passe a residir em Parnaíba ainda muito pequenina, pois não possui
lembranças de sua Piracuruca.
A minha terra querida
Que amo sem conhecer,
Vou um canto de ternura
Comovida lh’of’recer: [...][2]
Alguns biógrafos
que fazem chegar até os nossos dias as exíguas e fragmentadas informações acerca
de Luíza Amélia, apontam que a poetisa, desde seus mais tenros anos, já
demonstra grande interesse pela leitura, adquirindo, rapidamente, uma cultura
exemplar, fato considerado incomum para os padrões de seu tempo. Por aqueles
idos, a mulher enfrenta grandes preconceitos, principalmente quando busca ocupar
lugares sociais[3]
atribuídos, prioritariamente, ao sujeito do gênero masculino. Em seus primeiros
experimentos poéticos, a moçoila atrevida chega a descrever um retrato de si
própria, escrevendo:
D’estrutura
elegante, porte airoso
E a tez levemente
amorenada.
A boca não pequena
e narcada,
O olhar meigo,
triste e langoroso.
O cabelo corrido
mas lustroso,
Moldando-lhe a face
descorada;
O nariz regular,
fronte elevada
Prometendo um gênio
grandioso.[4]
O gênio grandioso
pressagiado se revela através de uma abnegada amante da poesia. Luiza Amélia
busca amealhar o máximo de conhecimentos acerca do fazer literário, o que lhe é
favorecido, em grande conta, por sua situação econômico-financeira
privilegiada. Consegue, assim, ler os principais autores românticos de sua
época, com especial enlevo para Maria Amália Vaz de Carvalho, Gonçalves Dias, Álvares
de Azevedo e Casemiro de Abreu, dentre diversos outros.
Como marca
indelével de sua personalidade, Luíza Amélia esbanja inquietude e ousadia em
sua escrita. Tomando a palavra de um lugar social de fala que é utilizado,
eminentemente, pelos homens, rompe barreiras e contraria opiniões, a começar
pelo seio da própria família. Seu espírito literário indômito prossegue esgrimindo
contra seu tempo, na busca por avanços para as mulheres em meio à sociedade
patriarcal e machista piauiense da segunda metade do século XIX, notadamente no
que diz respeito à garantia de liberdade de expressão. Em “Borboleta”, a poetisa,
já antecipando a almejada liberdade, devaneia:
Incansável
borboleta
Já não tem de que
sentir
As asas te restituo
És livre, podes
partir![5]
No que concerne à esfera conjugal, alinhada aos
preceitos da contextura social de que faz parte, a poetisa, no ano de 1859,
contrai núpcias com Pedro José Nunes, bem-sucedido comerciante orindo das
plagas médio-parnaibanas, passando a assinar Luíza Amélia de Queiroz Nunes.
Referindo-se à união da poetisa com o empresário, que, em sociedade com o
irmão, Gil José Nunes, filho do casal Luíza Barbosa Ribeiro e Gonçalo José
Nunes,[6] estabelece, em Parnaíba, a
firma Nunes & Irmão Ltda, Miranda assim escreve:
[...] Pedro José Nunes, então próspero
comerciante, convola núpcias com uma bela jovem da vila de Piracuruca, que
conhecera em Parnaíba, provavelmente estudando em alguma escola, Luíza Amélia
de Queiroz, que mais tarde se revelaria uma das principais poetisas do Piauí.[7]
O primeiro trabalho de Luíza Amélia que vai a lume
é “Flores Incultas”, em 1875,
levado a prelo nas oficinas da Tipografia Paiz Imp. M. F.V. Pires, do Maranhão.
Seu próprio título “[...] denunciava o
restrito acesso das mulheres à instrução, utilizando uma das imagens
construídas sobre as mulheres no período, vistas como flores, belas e incultas”.[8] A autora, demonstrando
profundo incômodo ante a condição de submissão sob o qual vive a mulher em sua
época, acusa
A mulher que toma a pena
Para em lira a transformar,
É, para os falsos sectários,
Um crime que os faz pasmar!
Transgride as leis da virtude;
A mulher deve ser rude,
Ignara por condição,
Não deve aspirar à glória!
Nem um dia na história
Fulgurar com distinção![9]
Ainda no volume “Flores inclutas”, poderá ser encontrado um de seus mais belos
sonetos, “O Homem Não Ama”, do
qual faz parte o fragmento abaixo:
Cruéis,
como Nero, são todos os homens,
Ateiam
as chamas de ardente paixão,
Depois...
observam, sorrindo, os estragos...
E
dizem, cobardes! Que têm coração.
Alguns
estudiosos em literatura romântica identificam,nos poemas coligidos em "Flores
incultas", uma acentuada influência de Casimiro de Abreu, uma dos autores
favoritos de Luíza Amélia. A ingenuidade e bucolismo, por se voltar a temas
relacionados à família, à religiosidade e às questões cotidianas de seu meio.
Tendo
ficado viúva de Pedro José Nunes, a poetisa contrai segundas núpcias, em 23 de dezembro de
1888, com Benedito
Rodrigues Moreira Brandão, passando a assinar, a partir de então, Luíza
Amélia de Queiróz Brandão. Sob o segundo esposo da poetisa, consta ter sido ele
empregado de confiança do estabelecimento comercial que a vate herdara do
primeiro casamento.[10] Com o tempo, Brandão
chega a se tornar
[...] rico e influente comerciante parnaibano,
fundador e presidente de 1901 a 1903 da Sociedade Protetora Parnaibana, além de
Vice-Intendente Municipal no período de 1887 a 1889, na administração do
Intendente Coronel Joaquim Antônio dos Santos (mais conhecido como Coronel
Quincas Santos).[11]
“Georgina ou os Efeitos do Amor” é a segunda obra de Luíza Amélia,
também levada prelo no Maranhão, em
1893; Com estrutura composta de cinco cantos, o pequeno livro é prefaciado por
Dias Carneiro, em que escreve:
[...] ao lado, porém da forma dourada e sutil, que
constitui, por assim dizer, a tela transparente do enredo: através da
imaginação brilhante, com que a autora enflora os detalhes do seu drama, o que
mais atraiu minha atenção foi o assunto do poema e o lirismo nacional que o
perfuma.[12]
No canto “Georgina
II”, a respeito do amor, pode ser lida a seguinte estrofe:
Amor, mistério, divinal
encanto;
Miragem, sonho, aspiração,
querer!
Vulcão ardente a derramar
incêndio;
Esfinge enorme de falaz poder![13]
Parte significativa da crítica literária aduz que,
em “Georgina...”, ao contrário de
"Flores Incultas", a erudita piracuruquense “esbanja uma sublime poética e o
desvínculo com sua influência casemira”.[14]
Além de se tornar ícone de substancial importância
para a literatura romântica piauiense, há registros de que Luíza Amélia também
realiza incursões como jornalista, colaborando em jornais e revistas da sua
época, a exemplo do semanário O Telefone,
que circulou em Teresina entre 1883 e 1889, e o Novo Almanaque de Lembranças Luso-brasileiro.
Sublimada pela inspiração e demonstrando ter
alcançado uma elevada espiritualidade, já nos últimos momentos de uma inglória
luta que trava contra um câncer de útero, a Princesa da Poesia Romântica do
Piauí ainda consegue reunir forças para escrever
Eu vejo... eu sigo, de Maria o vulto
Às plagas santas que Jesus habita;
Nele e na Virgem encontrando indulto
À pátria volto de onde andei proscrita.[15]
Luíza Amélia expira no plano terreno, em 12 de
novembro de 1898, em Parnaíba,
cidade que lhe dá acolhida durante a maior parte de sua vida. Seu corpo é
inumado no Cemitério da Igualdade, onde jaz, ainda hoje, sob a majestosa campa,
em mármore, d’onde irrompe frondosa gameleira. A inusitada presença da árvore
em seu túmulo suscita recordar os versos do soneto “Teto de inspiração”[16], no qual a poetisa
exprime seu desejo de ser sepultada à sombra do belo exemplar da família das
moráceas. O curioso fato é também citado em seus dados biográficos:
[...] a
poetisa desejava ser sepultada à sobra de uma gameleira. O seu desejo não pôde
ser atendido, mas a natureza, por si só, se encarregou de premiá-la com a
providencial sombra fazendo nascer de dentro de seu túmulo uma frondosa árvore
daquela espécie.[17]
Os poemas de Luíza Amélia, após a sua morte,
passam a integrar diversas coletâneas. Dentre as mais recentes, na Antologia de Sonetos Piauienses, com “A Deus”;[18] em Mulheres que amo[19]
e em Escritoras brasileiras do século XIX.[20]
O justo reconhecimento ao conjunto da obra de
Luíza Amélia chega às agremiações literárias e culturais. Na Academia Piauiense de Letras (APL), recebe, em
1921,[21]
como homenagem, o patrontato da cadeia n. 28, inaugurada por Elias de Oliveira
e Silva e ocupada, na sequência, por José Vidal de Freitas e Manfredi Mendes de
Cerqueira, se conterrâneo.[22]
Na Academia Parnaibana de Letras (APAL), é patrona da cadeira n. 24, tendo,
como primeiro ocupante, Carlos Oliveira Neto, seguido por Edimée Rego Pires de
Castro.[23]
Na composição da Academia de Letras da Região de Sete Cidades (ALRESC), dá nome
à cadeira n. 02, ocupada por Luiz Gonzaga Brandão de Carvalho.
Os estudos desenvolvidos, na atualidade, acerca
da vida e da obra de Luíza Amélia de Queiroz, especialmente por parte da comunidade
acadêmica que pesquisa literatura e relações de gênero, corroboram que a
poetisa “[...] afastou-se do modelo de mulher da sua época, utilizou o domínio
da leitura e da escrita para fazer poesia e, acima de tudo, publicá-las”.[24]
Apesar de não se constituir no mais perfeito modelo feminista, paralelamente à
erudição literária, recurso como qual enfrenta e rompe barreiras
socioculturais, há uma mulher normalmente inserida no cotidiano domiciliar e
provinciano: devotada esposa, dedicada tia na educação dos sobrinhos, dando vazão
à prole que não consegue lograr. Refletindo acerca da vida da poetisa,
Clodoaldo Freitas, um de seus principais biógrafos, indaga:
[...] o que hei de dizer de uma senhora cuja vida
serena deslizou no suave aconchego do lar [...] apenas empanada pela tênue
nuvem de uma saudade velada pelo cendal da dor pela morte ou separação de entes
queridos[25]
O memorial da barda piracuruquense, “[...] primeira mulher, no
Piauí, que se dedicou às letras, tornando-se notável pela inteligência arguta,
aliada a uma vasta cultura literária”,[26]
certamente não prosseguirá, em seu rincão, apenas emprestando nome a artéria pública, lugar de memória[27] e representação[28] com que quase nada se
identifica uma parte de seus conterrâneos, tampouco compreendem as razões de
tal homenagem. Para muito além disso, Luíza Amélia deverá ser lembrada pelo ousado
sequestro da palavra, com a publicação de seus ensaios poéticos. A borboleta de
sua metáfora, antes que consiga expandir suas asas e alçar o libertário voo
rumo ao infinito, necessita romper os limites tramados pelo casulo, que a
protege, mas também a oprime.
Às entidades culturais e educacionais, sejam de natureza pública, privada
ou em colaboração, cumpre, por dever de ofício, primazia de desenvolver
políticas voltadas à pesquisa, ao estudo e à divulgação dos bens culturais da
sociedade. Dedicada a honrar esse meritoso papel, a Academia Piauiense de
Letras (APL), em diversas oportunidades – e, agora, já em comemoração ao
centenário de sua fundação -, digna-se em promover a reedição de diversas obras
de autores piauienses, de reconhecida relevância, exemplo de "Flores Incultas" de Luíza Amélia de
Queiroz.
[1]NUNES, Luiza Amélia
de Queirós. Flores Incultas.
[2]NUNES, Luiza Amélia
de Queiroz. Flores Incultas. [São Luis]: Tip. Paiz. Imp. M. F. V. Pires, 1875; p.
47.
[3]Para Michel de
Certeau, “Toda pesquisa historiográfica se articula com um lugar de produção
sócio-econômico, político e cultural. Implica um meio de elaboração que circunscrito
por determinações próprias: uma profissão liberal, um posto de observação ou de
ensino, uma categoria de letrados”. CERTEAU, Michel de. A escrita da história. 2. ed. Rio de Janeiro: Forense
Universitária, 1982. p. 66.
[4]NUNES, 1875; p. 85.
[5] NUNES, 1875, p. 223.
[6] MIRANDA, Reginaldo.
Apontamentos genealógicos da Família
Nunes. Teresina: Academia Piauiense de Letras, 2013. p. 67.
[7] MIRANDA, Reginaldo.
Nunes, uma família da História.
Disponível em: <<www.academiapiauiensedeletras.org.br>>.
Acesso em: 04.09.2013
[8]ROCHA, Olívia
Candeia Lima. Cartografias literárias em devir: mulheres, escrita e subversão. Caderno Espaço Feminino (UFU), v. 1, p.
223-244. 2006.
[9] NUNES, 1875, p;
71-75.
[10] MIRANDA, 2013.
[11] FORTES FILHO, José.
A poesia romântica de Luíza Amélia. Disponível em <<www.portalentretextos.com.br>>.
Acesso em: 04.09.2013.
[12] GONÇALVES, Wilson
Carvalho. Antologia da Academia Piauiense
de Letras. Teresina: [s.n.], 2000. p. 363.
[13]
BRANDÃO, Luíza Amélia de Queiroz. Georgina
ou os efeitos do amor. [São Luís]: Tipografia do Pacotilha, 1893.
[14] FORTES
FILHO, 2013.
[15]
BRANDÃO, 1893.
[16] NUNES, 1875.
[17]ADRIÃO NETO. Dicionário
Biográfico Escritores Piauienses de Todos os Tempos. 2ª ed. Teresina: Halley
S.A.; p. 54.
[18] AIRES, Félix. Antologia de sonetos piauienses. Brasília:
Senado Federal, 1972. p. 23.
[19] MULHERES que amo.
Disponível em <<www.zezphina.utopia.com.br>>
Acesso em: 04.09.2013.
[20] MUZART, Zehidé
Lupinacci (Org.). Escritoras brasileiras
do Século XIX. Santa Cruz do Sul: Edunisc, 1999.
[21] FORTES FILHO, José
Amélia de Freitas Beviláqua, uma mulher de vanguarda. Disponível em <<www.meionorte.com>>. Acesso em:
04.09.2013.
[22] REVISTA da Academia
Piauiense de Letras, Teresina, ano LXXVII, n. 52, 1994. p. 239.
[23] ADRIÃO NETO, 1995,
p. 343.
[24] COSTA FILHO,
Alcebíades. Mulheres e leitura no Piauí:
institutos de representação intelectual: Academia Piauiense de Letras. In: I
Colóquio Internacional Literatura e Gênero: Relações de Poder, Gênero e
Representações Literárias, 2012. Teresina: Editora UESPI, 2012. p. 05.
[25] FREITAS, Clodoaldo.
Vultos piauienses: apontamentos
biográficos. 2. ed. Teresina: Fundação Cultural Monsenhor Chaves, 1998. p. 105.
[26] ALMANAQUE da
Parnaíba. [Parnaíba]: [s.n.], 1939.
[27]Para Pierre Nora “Os
lugares de memória nascem e vivem do sentimento que não há memória espontânea,
[...] mas se o que eles defendem não estivesse ameaçado, não se teria, tampouco,
a necessidade de construí-los. Se vivêssemos verdadeiramente as lembranças que
eles envolvem, eles seriam inúteis”. NORA, Pierre. Entre a memória e a
história: a problemática dos lugares. História,
São Paulo, n. 10, dez. 1993; p. 13.
[28]Definição constante
do Dicionário Furitière, Roger
Chartier menciona representação “como dando a ver uma coisa ausente, o que
supõe uma distinção radical entre aquilo que representa e aquilo que é
representado”. In: CHARTIER, Roger. A história
cultural: entre práticas e representações. Lisboa: Difel, 2002; p. 20.
(BRITO, Augusto. Luiza, uma poetisa. In: Flores Incultas. 2ª ed. Teresina: Academia Piauiense de Letras (APL), 2015 p. 241-249).
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